Neste momento está em tramitação no Congresso Nacional mais um golpe à nossa Constituição Federal. O pastor e deputado (ou deputado e pastor) Marco Feliciano apresentou o Projeto de Lei 8099/2014, que obriga, as escolas públicas a “oferecerem conteúdos sobre criacionismo em suas grades curriculares”. Se você tiver estômago o suficiente, leia a fundamentação da proposta na íntegra. Caso contrário, selecionei trechos e já os discuto logo abaixo.
Em primeiro lugar, trata-se de uma afronta à Constituição Federal, em especial ao seu artigo 19 em seu inciso I, que afirma:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”
O ensino de criacionismo, especialmente nos moldes citados pelo deputado, é uma forma de estabelecer ou subvencionar cultos religiosos em espaço público, uma vez que criacionismo faz parte do arcabouço mitológico de determinadas religiões. Este único motivo já deveria ser o suficiente para que nenhum nobre deputado tivesse intenção de apresentar proposta como esta. Aliás, apresentar uma proposta tão claramente inconstitucional é uma leviandade e um descaso com o dinheiro público, uma vez que envolverá tempo de congressistas que poderiam se ater a matérias mais importantes. E, consequentemente, tomará tempo do judiciário, pois certamente terá sua validade questionada junto ao STF.
O parágrafo 1º do PL determina que tipo de criacionismo deve ser ensinado:
“§ 1º – Os conteúdos referidos neste artigo devem incluir noções de que a vida tem sua origem em Deus, como criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe.”
Assim como consta na justificativa do deputado, é clara a determinação do ensino do criacionismo conforme Gênesis:
“Ocorre que por força da fé, dos costumes, das tradições e dos ensinos cristãos, a maioria da população brasileira crê no ensino criacionista, como tendo sua origem em Deus, criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe, como animais, plantas, o próprio homem.
Este ensino tem como fundamento o livro de Gênesis contido no livro dos livros, a saber, a Bíblia Sagrada que é a verdadeira constituição da maioria das religiões do nosso país.”
Bem, apesar de a maioria da população brasileira professar religião que aceita estes dogmas, incluir apenas este no ensino público de forma obrigatória irá justamente contra a Constituição Federal. Marco Feliciano chama a CF para seu trecho no artigo 5º que alega que o cidadão tem liberdade de crença para justificar a necessidade da inclusão do criacionismo. Na realidade obrigar alunos a terem estes ensinamentos na escola vai justamente contra esta norma da CF. Mas é compreensível a tentativa (nice try, congresso man), pois segundo a ideia do pastor Marco Feliciano e de outros fundamentalistas religiosos, a Evolução é “só uma teoria” e não um fato científico. Com esta jogada, Feliciano quer que a sociedade acredite que Evolução é uma crença tanto quanto a religião que ele professa. Se fosse o caso de aceitar criacionismo, para ser honesto, seria necessário aceitar os inúmeros criacionismos que o homem já inventou. Estes sim, têm igual poder explicativo, pois são conhecimentos correspondentes. Podem ser demonstrados igualmente. Em relação à evolução, criacionismos definitivamente não são análogos, como o segundo parágrafo sugere:
“§ 2º – didaticamente o ensino sobre criacionismo deverá levar ao estudante, analogamente ao evolucionismo, alternância de conhecimento de fonte diversa a fim de que o estudante avalie cognitivamente ambas as disciplinas.”
O problema é que não é assim. Evolução é uma teoria tal como a gravidade. É ciência testada e atestada desde 1859 com a publicação do livro de Darwin. É ciência nos moldes que a filosofia da ciência atesta, possibilitando refutação e predições. Haldane, certa vez, comentou que jogaria tudo fora se fossem encontrados fósseis de coelhos no pré-cambriano. Este é o exemplo mais simples de como a evolução poderia ser refutada. E há várias outras formas. O problema é que ela até hoje não foi refutada. Isso sem falar nas predições. Darwin ao observar uma flor de orquídea predisse que seu polinizador deveria ter uma língua muito longa para poliniza-la. Levou mais de cem anos, mas em 1997, o cientista L. T. Wasserthal descreveu a forma como mariposas esfringídeas polinizavam tais orquídeas.
Ou seja, é impossível utilizar um conhecimento tradicional e mitológico como alternativa à uma teoria científica comprovada. A própria Bíblia, por exemplo, atesta a herança de caracteres adquiridos. Precisamos então ensinar isso na disciplina de genética também? A zoologia deve dar espaço para dizer que morcegos são aves?
A justificativa do nobre senhor deputado ainda guarda pérolas dignas daquelas redações de ENEM:
“Em termos mais simples, ‘os seres vivos provieram da matéria inorgânica, e das plantas se originaram os animais e, por fim, dos animais teria provido o homem’, ou seja, ‘sempre do menos teria vindo o mais, do inferior, por desabrochamento, teria vindo o superior’.”
Gente! De onde foi que ele tirou isso???? Do pior livro de biologia já escrito pela humanidade? “Das plantas se originaram os animais”??? Além desta aberração, o pequeno trecho também dá a entender a evolução como uma linha reta de escala de complexidade. Utiliza termos que não são utilizados em evolução, como “inferior” e “superior”. E o “desabrochamento”? O que é que ele quer dizer com esse desabrochamento?
É muito fácil inventar uma definição simplista e errônea sobre algo que você quer destruir, pois aí você não precisa passar pelos espinhos que são compreender como funciona e elaborar uma argumentação plausível e convincente. A isto nós chamamos de falácia do espantalho. Se alguém me fala que isso é evolução, até eu encontro inúmeros argumentos para refutar. Evolução não é isso. Evolução é mudança ao longo das gerações. E evolução, mais uma vez é ciência. Merece e deve ser ensinada em aulas de ciência, pois é a explicação científica para a biodiversidade.
“Assim sendo ensinar apenas a teoria do evolucionismo nas escolas, é violar a liberdade de crença, uma vez que a maioria das religiões brasileira acredita no criacionismo, defendido e ensinado na Igreja Católica, que ainda hoje é maioria no país, pelos evangélicos e demais denominações assemelhadas.”
Negativo. Pelo simples fato de que Evolução não é crença. Logo, não está violando absolutamente nada. Os pais tem todo o direito de matricularem seus filhos ou em escolas confessionais, ou em escolas dominicais religiosas que irão ensinar toda a mitologia de sua religião da forma como eles desejam. Na escola isso não pode acontecer. Em aulas de ciências deve ser ensinado ciências. E mais uma vez, mesmo que a maioria seja cristã, a minoria também tem o direito de liberdade de crença. Quer ensinar criacionismo, então seja justo, ensine todos. Para evitar problemas, é melhor não ensinar nenhum, principalmente em aulas de ciências. Eu já escrevi em outras épocas sobre o criacionismo não ser uma alternativa à evolução em aulas de ciências, vale a pena relembrar.
“As crianças que frequentam as escolas pública tem se mostrado confusas, pois aprendem nas suas respectivas escolas noções básicas de evolucionismo, quando chegam a suas respectivas Igrejas aprendem sobre o criacionismo em rota de colisão com conceitos de formação escolar e acadêmica.”
Pois este é justamente o papel da escola. Fazer as crianças pensarem. Se elas estão confusas é porque o ensinamento tradicional não está batendo com o que a ciência está mostrando. Isso já aconteceu antes, quando a crença era num planeta tabular ou quando a crença era em um Sol rotacionando a Terra. Ou ainda quando a crença era um planeta segurado pelo gigante Atlas sobre a Grande Tartaruga. Ora, é facultado aos pais darem o ensino religioso que desejarem aos seus filhos. Mas isso é pessoal. Cada um pode escolher o que desejar. O que o deputado quer, com isso, é obrigar todos a professarem sua religião. Este simples motivo já torna o PL inconstitucional. É necessário que se entenda que a Evolução faz parte de um conjunto de conhecimentos denominados atualmente como científicos. Estes conhecimentos levaram o homem à Lua, nos permitem utilizar computadores e internet e, recentemente, levaram uma sonda a pousar em um cometa. A mesma ferramenta, o método científico, é utilizado para explicar nossas origens e a origem da diversidade de vida do nosso planeta. Não importa se você acredita ou não, por isso é que deve ser ensinado em escolas. É um conhecimento que suplanta a necessidade de crença. Cabe aos religiosos buscar (seja em seções mediúnicas, seja em conversa direta com seus deuses) as explicações de por que os escritos de seus livros sagrados não batem com as evidências que nos são apresentadas pela natureza. E esta explicação não cabe aos cientistas, nem aos professores.
“Ensinar apenas o EVOLUCIONISMO nas escolas é ir contra a liberdade de crença de nosso povo, uma vez que a doutrina CRIACIONISTA é a predominante em todo o nosso país.”
Mais uma vez, não é ir contra a liberdade de crença. As crianças podem continuar professando a crença imposta pelos pais da mesma forma. Apesar de o criacionismo bíblico ser predominante no Brasil, não é o único, e sua imposição sim, iria contra a liberdade de crença. E mais uma vez a questão está nos diferentes conhecimentos em questão. O conhecimento científico, que é o adequado para as escolas, e o conhecimento tradicional e religioso, que tem seu espaço nas dependências religiosas à escolha de cada um.
“O Ensino darwinista limita a visão cosmológica de mundo existencialista levando os estudantes a desacreditarem da existência de um criador que está acima das frágeis conjecturas humanas forjadas em tubos de ensaio laboratorial.”
Este criador é parte de um conjunto de crenças que não são verdades absolutas. São questões de foro íntimo e assim devem ser tratadas. O ensino “darwinista” não limita a visão cosmológica, mas oferece a versão científica, baseada em fatos e evidências, como todo o restante do conhecimento ensinado nas escolas.
“Sem menosprezo ao avanço tecnológico e científico, indispensável às necessidades sociais enquanto aplacador da inventividade e curiosidade humanas, é possível harmonizar ensinos que contribuam ao desenvolvimento e amplitude da visão cósmica do conhecimento humano.”
É possível, mas não cabe em aulas de ciências. Ninguém ensina a ocupação de Westeros pelos primeiros homens nas aulas de história. São coisas diferentes. Por mais que os adeptos de crenças judaico-cristãs acreditem que a Bíblia é verdadeira e inequívoca, ela não é a única explicação não científica da cosmogonia e da origem do ser humano. Mesmo em se tratando de Bíblia, não há consenso sobre sua literalidade. Se formos observar a maioria dos brasileiros, então, podemos acatar o que o papa Francisco disse, que a evolução é fato. Coube a ele interpretar tais escrituras frente ao conhecimento científico atual. Assim, para o chefe da religião da maioria dos brasileiros, não há problemas no ensino de evolução.
Definitivamente, então, mitos de criação não são alternativas à evolução e, portanto, não podem ser ensinados em aulas de ciências. E o Estado não pode obrigar alguém a aceitar a “verdade” de uma religião em detrimento de outras igualmente explanatórias e válidas do ponto de vista religioso, mesmo que seja desejo da maioria. E isso vale tanto para este criacionismo quanto para os mais recentes, como o Projeto Inteligente (Intelligent Design).
É mais uma lei para obrigar a ensinar alguma coisa. E de mais um deputado ignorante no assunto que está sendo tratado na própria lei. Pelo que ele colocou no projeto como justificativa, o deputado Marco Feliciano entende menos de evolução do que o meu sobrinho de seis anos. E a interpretação literal que ele faz do livro do gênesis é uma tolice. Além de ser inconstitucional, esse projeto faz os cristãos parecerem um bando de ignorantes. Como cristão e professor do ensino fundamental, eu protesto duplamente. Como cristão, eu creio que Deus criou o céu e a terra, mas o criacionismo é uma bobagem pseudocientífica.