Direto do túnel do tempo para o blog, republicação de um texto de 2004 para nosso Projeto Evoluindo.
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Recentemente a governadora do Estado do Rio de Janeiro, Rosinha Mateus, instituiu o ensino confessional de religião ao currículo de suas escolas. Do ponto de vista cultural, o ensino da história e fundamentos de diversas religiões seria muito bem vindo, pois enriqueceria em muito o potencial crítico das crianças em desenvolvimento. Entretanto, o ensino confessional, onde crianças de determinadas religiões assistem a aulas específicas desta mesma religião, não passa de doutrinação. Escola não é lugar de doutrinação. Para isso existem as escolas dominicais, catequese, etc., em que cada pai escolhe onde o filho vai ser doutrinado (em geral as crianças não têm opção, mas este é assunto para um debate em separado). Nosso povo sofre de uma nítida falta de cultura geral. Muito mais válido seria ocupar este horário com disciplinas a respeito de cidadania, educação sexual, educação ambiental. Muito mais válido seria oferecer mais cultura à população, não doutrinação, não fornecer mais meios de dominação.
Na Europa, por outro lado, há países onde o pensamento cético faz parte de disciplinas escolares. Pensamento cético também seria extremamente mais válido. Permitiria às pessoas pensarem duas vezes antes de procurar curandeiros; antes de procurar cartomantes e outros videntes; antes de aceitar as verdades absolutas de demagogos cobertos por uma vestimenta catedrática. Definitivamente, o pensamento cético evitaria filas de peregrinos rumando para visitar uma imagem que apareceu no vidro, na esperança que tal imagem lhes ajude em seus problemas de saúde, financeiros ou emocionais.
É comum, ao procurarmos um carro usado, o levarmos até um mecânico de confiança antes de fechar negócio, pois não acreditamos em tudo o que o vendedor nos diz. Somos céticos em relação à propaganda que ele promove. Alguns são céticos em relação a tratamentos médicos inovadores ou pouco estudados. Alguns são céticos em relação a certas pessoas que não lhes inspiram confiança. De acordo com o Dicionário Houaiss, “o ceticismo moderno é definido como a rejeição de qualquer conhecimento absoluto ou metafísico, admitindo a possibilidade de uma investigação científica do mundo exterior e a necessidade de uma aceitação não dubitativa das crenças cotidianas e do senso comum”. O ceticismo é uma ferramenta da ciência. Nenhum artigo científico planeja ter a verdade absoluta, estando qualquer idéia científica passível de contestação. A inclusão de dogmas na análise científica tende a distorcer o resultado final, uma vez que estaria imbuída das concepções subjetivas do pesquisador. Qualquer cientista sério busca minimizar a influência cultural ou tradicional em suas análises, em últimas palavras, sendo crítico.
Não contente com apenas doutrinar o povo, a governadora Rosinha Mateus quer que o criacionismo seja ensinado nas aulas de ciências, como alternativa para as explicações científicas de origem da vida e evolução. Neste ponto temos duas questões. A primeira é se o criacionismo deve ser ensinado e qual criacionismo pretende-se ensinar; a segunda é se o criacionismo deve ser ensinado como alternativa às teorias científicas.
É claro que o criacionismo pretendido pela governadora não passa do mito judaico-cristão de origem da vida, propagado pela Torah e pela Bíblia. Certamente não está nos seus planos que também sejam ensinados o criacionismo védico, babilônico, egípcio, grego, guarani, yorubá, chinês ou de qualquer tribo da Indonésia, África ou Américas. Muito provavelmente todos os povos tenham seus mitos de criação, afinal, perguntar-se de onde viemos é próprio do ser humano em geral, não um privilégio de uma determinada casta. O ser humano é caracteristicamente questionador, embora muitas vezes esqueça-se disto. Assim, os povos lançavam mão de qualquer argumento mais elaborado, apropriado para a situação. Realmente seria muito interessante, do ponto de vista cultural, que as crianças tivessem acesso a este tipo de informação, que os vários mitos de criação pudessem ser mostrados nas escolas como as manifestações culturais de cada povo, sem preconceitos ou julgamentos.
O criacionismo judaico-cristão é tão verdadeiro quanto qualquer outro mito de criação. Um argumento bastante fácil de ser ouvido quanto a isso é que a grande maioria da população brasileira é formada por católicos e evangélicos, que acreditam na Bíblia. O detalhe é que este não é um problema nosso. É decorrente da crença dos povos dos países que dominaram o que hoje chamamos de território brasileiro. Antes disso o que tínhamos era uma vasta coletânea de mitos. Entretanto, se levarmos este argumento em consideração, temos que mais de 75% da população brasileira é católica. Os católicos, incluindo o papa, entendem que a criação descrita na Bíblia é uma metáfora, não uma história no sentido literal. O papa, inclusive, já declarou que a Igreja não é contra a evolução. Se formos seguir este raciocínio, não há motivos para que o ensino do criacionismo judaico-cristão preencha um tempo qualquer na grade curricular das escolas, tampouco como alternativa à evolução biológica. Mais uma vez se mostram claras as intenções de doutrinação evangélica da governadora.
Digamos que o criacionismo judaico-cristão deva ser ensinado. Qual seria o lugar ideal para isso? É claro que as aulas de religião confessional seriam o reduto ideal para tal ensinamento. Como faz parte da mitologia judaico-cristã, nada mais coerente que seja ensinado nas aulas de religião de católicos e evangélicos. Não tem sentido algum incluir tal mitologia em aulas de ciências. Em aulas de ciências espera-se que se ensine ciências. As aulas de ciências são ministradas de acordo com conteúdo didático preparado e atualizado de acordo com novas descobertas científicas, decorrentes de observações e experimentações relatadas através do método científico. Nenhuma mitologia passa pelo crivo da análise científica. Embora muitos criacionistas tenham se apropriado de descobertas científicas para validar seus mitos, muitas vezes o fazem distorcendo fatos científicos comprovados ou com argumentos onde as premissas necessárias para que o mito seja real fogem completamente do que é reconhecidamente natural. Um exemplo muito interessante são as datações por radio-isótopos. Alguns criacionistas insistem que as datações estão erradas quando cientistas afirma que determinado fóssil tem mais de 10.000 anos. Entretanto, quando um registro arqueológico passa por semelhante sistema de datação e corrobora uma narrativa bíblica, ele é usado como exemplo. A conveniência faz a verdade.
Talvez o mais difícil para os criacionistas seja aceitar que uma teoria científica pode ser refutada. Em ciência não há verdade absoluta e, por isso, não se pode aceitar o relato bíblico como verdadeiro. A ciência atual está repleta de exemplos que desmentem o relato bíblico. Mesmo em sua nova roupagem pseudo-científica, o criacionismo não consegue suplantar as correntes teorias acerca da origem da vida e da evolução. Os contra-argumentos são freqüentemente recheados de equívocos causados por falhas em conhecimentos biológicos básicos. Outras vezes se prendem a aspectos ainda não explicados pela ciência. É muito pertinente dizer que um determinado mecanismo ainda não decifrado é obra divina quando a ciência ainda engatinha.
Realmente, ainda há muita coisa a ser descoberta. Muitos mecanismos biológicos a serem decifrados. Nem todas as espécies existentes no planeta são conhecidas sequer superficialmente, imagine em profundidade. Este é o medo maior dos criacionistas. É por isso que insistem na doutrinação, passando uma falsa impressão de sapiência travestida de autoridade. É por isso que não vemos movimento semelhante que objetive que nossos jovens aprendam e discutam ciência.
Interessante também é o fato de que embora o governo ache recursos para custear evangelização, não faltam desculpas para o despreparo dos professores das disciplinas tradicionais, falta de equipamentos e recursos didáticos, má remuneração dos profissionais e péssimas instalações educacionais. O sonho de qualquer professor de ciências seria um laboratório de ensino bem equipado, para que nossos jovens pudessem deslumbrar a simplicidade da ciência, para tê-la perto de si.
Não se pode comparar um mito com um fato científico. Não podemos comparar a velocidade de um unicórnio com a velocidade de um cavalo, pelo simples fato de que unicórnios são mitos. Nenhum mito atualmente pode ser usado como alternativa a uma explicação científica. O conhecimento atual pode se comprovar falho no futuro, e nem por isso mitos da Antigüidade tornam-se verdadeiros. Novas descobertas sempre irão corrigir e suplantar as falhas antigas, num constante processo de auto-correção, próprio da ciência.
Muito mais útil que ensinar uma ou outra religião em nossas escolas seria imbuir nossos jovens de um pensamento crítico, capaz de fazer com que eles repensem o mundo que os cercam e busquem suas próprias conclusões.