Uma questão de responsabilidade

Divulgação científica de qualidade é algo raro. São poucos os verdadeiros cientistas que se dispõem a dedicar uma parte de seu tempo escrevendo para o público em geral. Até por isso, os poucos que assim o fazem devem ter um cuidado redobrado para evitar erros de interpretação por parte do público ou até mesmo evitar que suas convicções pessoais atrapalhem o bom entendimento de assuntos delicados. Na realidade, é praticamente impossível evitar adicionar as convicções pessoais nos textos em muitos casos, mas é importante que o público saiba até onde é fato e até onde são opiniões do escritor.

Neste texto, publicado no Observatório da Imprensa em 03/07/2007, eu faço uma análise de um artigo do Dr. Sérgio Penna, renomado geneticista brasileiro, e das idéias de outros defensores do anti-adaptacionismo.

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‘Grandes poderes requerem grandes responsabilidades’, disse Ben Parker ao jovem Peter, que recentemente havia adquirido grandes poderes de uma aranha especial (grande sucesso dos quadrinhos e do cinema – Homem Aranha). O poder da autoridade na divulgação científica não deve fugir desta máxima. O contato que o público em geral tem com ciência além dos bancos da escola são os artigos e reportagens veiculados nos meios de comunicação de massa, como jornais e revistas (e atualmente, também a internet). É nesse campo que os cientistas precisam se dedicar ao máximo para levar ao público informação correta e sem distorções.

O público em geral desconhece o debate por trás da notícia e muitas vezes está alheio ao método científico. Daí, a grande responsabilidade em se levar informações corretas e sem viés interpretativo ao público, que confia na palavra do cientista. Além disso, é interessante como muitas vezes a opinião de uma autoridade sobre um determinado assunto passa a ser lei, mesmo que não esteja embasada em qualquer evidência científica para tanto. O dr. Francis Collins, um dos homens por trás do desvendamento do genoma humano, comentou sobre sua experiência em conseguir adequar a religião que segue com a ciência que faz. Tal entrevista foi suficiente para que teístas de várias vertentes exclamassem que a ciência e a religião são, então, miscíveis, como se um ou poucos exemplos fossem suficientes para que esqueçamos as divergências filosóficas – afinal, foi o dr. Collins quem disse.

Nesta análise, tentarei demonstrar que descuidos na divulgação científica podem causar mais prejuízo do que contribuir para a percepção de ciência do público em geral, pois enaltecem más interpretações ou apresentam vieses que podem ser correlacionados com convicções e expectativas pessoais.

Cultura é fruto do cérebro

O artigo em questão é de autoria do dr. Sérgio Danilo Pena, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais e autoridade em genética no Brasil. Recentemente, examinou o DNA de vários atletas brasileiros e caracterizou a ginasta Daiane dos Santos como possuidora de um genoma tipicamente brasileiro. Em sua coluna na revista Ciência Hoje online do dia 08/06/07, ele escreve sobre a ‘desconstrução do fundamentalismo darwinista’ (ver aqui) que, quero crer (a julgar por outros artigos da coluna), deve ter sido fruto de um dia ruim.

O artigo é uma crítica relacionada com o adaptacionismo, ou seja, a explicação adaptativa para os fatos biológicos – os seres vivos são adaptados ao meio onde vivem. Para um exemplo simples e conhecido, lembramos das mariposas salpicadas, que tiveram sua população diminuída dando lugar a uma forma melânica (escura) com a revolução industrial na Inglaterra, uma vez que esta forma seria mais adaptada aos caules mais escurecidos pela fuligem das indústrias, por não estarem tão suscetíveis a predadores quanto a forma salpicada.

A crítica do dr. Pena ao ‘fundamentalismo darwinista’ se inicia quando ele cita seus ídolos Stephen Jay Gould e Richard Lewontin e seu artigo ‘The spandrels of San Marco and the panglossian paradigm’ (os tímpanos de São Marcos e o paradigma panglossiano). A alusão é ao dr. Pangloss, personagem de Cândido, de Voltaire, que racionalizava qualquer calamidade como se acontecesse com a melhor das intenções, como se esta fosse a melhor maneira possível. Gould e Lewontin criticam os excessos do adaptacionismo, chamando-os de ‘paradigma panglossiano’, caricaturizando o adaptacionismo como um todo, no que podemos chamar de falácia do espantalho – inventa-se uma nova definição (ou uma caricatura, um espantalho) para um termo ou fato e depois se critica com toda a propriedade o tal espantalho como se fosse o próprio fato.

Pois bem, o dr. Pena critica especialmente as explicações adaptacionistas do comportamento humano. Assim como Gould e Lewontin fizeram antes dele, o dr. Pena ridiculariza a explicação adaptacionista quando se trata de humanos: ‘Uma das manias irritantes dos psicólogos evolutivos e sociobiólogos contadores de estorinhas evolucionárias é tentar explicar nossa conduta com base na observação do comportamento de primatas não-humanos.’

Em primeiro lugar, destaco o tom jocoso de ‘contadores de estorinhas’ utilizado pelo autor. Sem apresentar qualquer contra-argumento, dr. Pena ataca as explicações evolutivas atacando seus autores. Este tipo de argumento ad hominem não é de bom tom para um texto de divulgação científica. Ele usa o poder de sua autoridade para criticar toda uma linha de pesquisa, apenas ridicularizando os pesquisadores. O dr. Pena parece esquecer que o poder requer responsabilidade, como diria Ben Parker. Em segundo lugar, qual o problema no estudo do comportamento comparado? A não ser que se acredite que o ser humano foi criado em separado, a abordagem é impertinente. Quer dizer que para analisar seqüências de DNA e afirmar com certeza que Daiane dos Santos representa a proporção étnica brasileira é possível se fazer comparações, mas em relação ao comportamento não? Os críticos do adaptacionismo e da psicologia evolutiva preferem dar mais valor à cultura nesses casos, embora prefiram não lembrar que a cultura é fruto do cérebro, e não é exclusividade humana.

Na última edição da revista Current Biology há um artigo evidenciando a transmissão de cultura entre diferentes grupos de chimpanzés (a transmissão de culturas dentro do mesmo grupo de chimpanzés já é conhecida há muito tempo). Precisamos, então, descartar tudo que sabemos sobre homologias – as características que são semelhantes por descendência comum. É aí que entram as convicções pessoais, pois não há, em momento algum, no texto do dr. Pena, uma evidência sequer que favoreça seu ponto de vista.

Uma estrada escorregadia

Segundo o dr. Pena e outros árduos lutadores contra o ‘determinismo genético’ (entre eles, o geneticista Richard Lewontin, motivo pelo qual gosto de me referir a tais pessoas como Lewontinianas, em um bom sentido), se o comportamento, a moral e tudo mais relacionado com a mente humana forem moldados pelos genes, os humanos perdem seu livre-arbítrio e as possibilidades de escolher seu destino. Se a mente também é codificada pelos genes, de acordo com o dr. Pena, ‘o genoma se torna o equivalente secular da alma’.

Aqui seria um bom momento para exemplos, para mostrar os fatos. No entanto, que exemplos há no texto do dr. Pena? Há apenas a ridicularização de explicações evolutivas para comportamentos humanos, como o de um estudo recente que mostrou que homens de olhos azuis acham mulheres de olhos azuis mais atraentes. A explicação dos autores, Bruno Laeng e colaboradores, é a de que a preferência de um genótipo recessivo facilitaria a detecção inconsciente da paternidade, uma vez que se a esposa o traísse com alguém de olhos castanhos e engravidasse, a criança teria olhos castanhos e revelaria a infidelidade.

Como bom ridicularizador do paradigma panglossiano, o comentário do dr. Pena foi: ‘Não sei o que vocês leitores acham disso, mas pessoalmente considero um disparate!!!’. Haveria alguma explicação alternativa a ser dada em face dos dados do trabalho? Outras informações relevantes poderiam ter sido apresentadas para que o leitor pudesse tirar suas próprias conclusões. Por exemplo: entre as mulheres de olhos azuis, não houve preferência por cor de olhos nos homens; entre homens de olhos castanhos, não houve preferência de cor de olhos nas mulheres, entre outros dados interessantes da pesquisa.

O fato é que há explicações adaptacionistas boas e más, como expõe muito bem Daniel Dennet (A Perigosa Idéia de Darwin, editora Rocco). Dennet pergunta ainda se a ‘ascensão e queda de sucessivas explicações adaptativas para várias coisas é indício de uma ciência saudável, constantemente melhorando sua visão, ou será o hábito patológico do mentiroso compulsivo que está sempre mudando a história?’ Em resposta, Dennet comenta sobre a falta de raízes das alternativas levantadas por Gould e Lewontin contra o adaptacionismo, o que depõe contra a segunda opção. Talvez, se parassem de criar espantalhos, pudessem chegar a respostas mais fundamentadas. É nesta estrada escorregadia que os adeptos destas idéias seguem.

Recentemente, foi publicado um artigo na revista Nature sobre a personalidade dos animais. Aliás, quem já teve mais do que um bicho de estimação sabe muito bem sobre o que vou comentar. Pesquisadores descobriram que em uma população diferentes indivíduos resolvem problemas de modos diferentes (como enfrentar um predador ou fugir, por exemplo), característica típica de distintas personalidades. Ou seja, cada indivíduo tem uma personalidade própria. Um outro estudo, publicado na revista Current Biology em março deste ano, demonstrou que ratos apresentam metacognição, a capacidade de refletir sobre o próprio conhecimento (também presente em primatas não humanos).

Teriam tais animais livre-arbítrio para escolher seu destino ou seu comportamento seria moldado pelos genes? Ou ainda, será que não teremos que redefinir ‘livre-arbítrio’, como já fizemos com ‘linguagem’ e vários outros termos que julgávamos serem de exclusividade humana?

Deixar de lado convicções pessoais

Toda esta discussão está relacionada com uma controvérsia bastante antiga – natureza versus aprendizado. Será que nosso comportamento, nossa mente, nossa personalidade é moldada pela natureza representada pelo genoma, ou será que é puramente cultural, fruto de nosso aprendizado durante a vida? A luta contra um ‘mestre-dos-fantoches’ parece ser, de certa forma, um contra-senso quando contabilizamos o número de deuses que o ser humano já venerou e que, em graus variados, interfeririam na vida humana. No entanto, a questão do livre-arbítrio já foi debatida por inúmeros filósofos, como Kant, Spinoza e Hume, entre outros, sem uma explicação que seja adequadamente plausível.

Dizer que temos porque temos é deixar de lado o ombro dos gigantes e apelar para explicações simplistas. Além disso, ignorar o genoma na determinação de nossa personalidade e deixá-la exclusivamente ao aprendizado, ou seja, aos nossos pais, amigos, cultura ou tradição, torna nossa personalidade ainda mais determinada e menos livre. Ainda, de uma maneira pior, determinada a partir do meio exterior. Tal possibilidade de determinação a partir do meio exterior abre margens para os mais diversos planos de controle por membros dominantes. Além disso, estudos com gêmeos e com crianças adotadas sugerem um panorama bem diferente.

A cultura humana é um produto da mente de forma a retroalimentar sua própria criação. Matt Ridley, em O Que Nos Faz Humanos, exibe excelentes exemplos de como o aprendizado (e outras características da mente) é moldado pelos genes e como os genes são influenciados pelo aprendizado, de modo que a controvérsia natureza versus aprendizado deveria ser enterrada, dando lugar à ‘natureza através do aprendizado’.

Assim, o dr. Pena, como vários outros, poderia utilizar o poder de sua autoridade para desfazer conceitos errados, contribuindo com a erradicação de ridicularizações simplistas que não contribuem em nada para com o conhecimento. Como comentou recentemente o dr. Glaucius Oliva, na posse dos novos membros da Academia Brasileira de Ciências, ‘a responsabilidade sobre a maior compreensão pública em relação à ciência e tecnologia cabe a nós mesmos, da comunidade científica…’

Se os detentores do poder da autoridade, colunistas e autores de artigos nas revistas de divulgação científica, utilizam seu poder para deturpar ou para impor convicções pessoais, como teremos uma sociedade cientificamente consciente a ponto de votar, por exemplo, em um plebiscito acerca da liberação de células-tronco para pesquisas? Richard Feynman, em Deve ser brincadeira, sr. Feynman, recomenda que os cientistas não enganem os leigos quando falam como cientistas, devendo se esforçar ao máximo para mostrar que talvez estejam errados. Às vezes precisamos deixar de lado convicções pessoais para levar ao público informações corretas e sem viés interpretativo.

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