Os organismos geneticamente modificados pela inserção de sequência de DNA exógeno, também conhecidos como transgênicos, têm sido alvo de muita especulação, ceticismo e resistência pela população em geral e, especialmente, por ambientalistas. Vou tentar começar uma série de discussões sobre transgênicos mas não vou fazer isso em uma cronologia didática, me perdoem. Vamos discutindo tópicos específicos. Para saber um pouco mais sobre transgênicos, sugiro ouvir nosso podcast Rock com Ciência. Temos um episódio dos primórdios do programa, sobre Biotecnologia, e outro mais recente, especificamente sobre Transgênicos.
A questão de hoje é uma discussão que tem acontecido há alguns anos, sobre a utilização de uma tecnologia atualmente proibida no Brasil, a tecnologia GURT (Genetic Use Restriction Technology, ou Tecnologia de restrição de uso genético). Esta tecnologia restringe o uso da semente geneticamente modificada, impedindo, por exemplo, que um produtor use as sementes obtidas em sua plantação para plantar na temporada seguinte.
Depois das primeiras tentativas de avançar este assunto no nosso legislativo federal, este ano surgiu um novo Projeto de Lei (1117/2015 de autoria de Alceu Moreira – PMDB/RS). Isso parece maldade, não é mesmo? Por mais aversão que eu tenha à bancada ruralista (e tenho) neste assunto eu não discordo completamente deles. Vou explicar.
Esta é uma tecnologia que protege o investimento da empresa, sem dúvida alguma. Aliás, o investimento em biotecnologia não é pouca coisa. São muitos anos de pesquisa e muito dinheiro investido para se liberar um novo produto no mercado. Se você investe tanto assim, não ia querer que as pessoas pudessem comprar seu produto uma única vez e ter lucros indefinidamente com aquilo que você desenvolveu, não? Algo que permitisse isso provavelmente teria valores de comercialização beirando um grande investimento de longo prazo. Algo como um imóvel, por exemplo. Infelizmente temos que pensar neste lado da questão também.
Mas eu gostaria de apontar aqui um outro lado. Uma outra grande preocupação dos ambientalistas é a possibilidade de que o gene exógeno inserido numa cultivar contamine plantações vizinhas convencionais ou, pior ainda, contamine plantas nativas da mesma espécie ou aparentadas. Há uma série de questões a se considerar para chegarmos neste cenário. A espécie precisa ser alógama, ou ter um grau de alogamia razoável. Alogamia é a fecundação cruzada, quando um indivíduo de uma planta precisa enviar pólen para fecundar um outro indivíduo. O milho, por exemplo, é uma planta alógama. Uma planta precisa fecundar outra. Há plantas autógamas, em que o próprio pólen fecunda seu próprio óvulo, como a soja, por exemplo.
Como o milho tem seu pólen disperso pelo vento, ele pode alcançar plantações vizinhas e fecundar uma plantação convencional. Por isso, na legislação há especificidades quanto a distância entre plantações transgênicas e convencionais, bem como sobre barreiras para evitar esta contaminação. Existe uma preocupação muito grande e extremamente justificada, de escape gênico de plantações transgênicas para variedades nativas. Afinal, apesar de anos de melhoramento genético levando a variedades muito diferentes das originais, tecnicamente as plantas melhoradas e suas originais são intercruzantes. Por isso o uso de transgênicos nas regiões de origem da planta nativa precisa ser muito bem regulamentado. Existe também a preocupação do cruzamento das plantas geneticamente modificadas com outras plantas da localidade. Convenhamos, aí precisa bastante sorte (ou azar) e imaginação. Por mais que isso eventualmente possa acontecer, há que se considerar que não é só o gene inserido que vai ser problema. Por outro lado temos a seleção natural que em geral age contra estes desvios (ok, nem sempre, mas aí voltamos na questão de sorte/azar).
Enfim, existe a preocupação com contaminação através de cruzamentos. E em alguns aspectos considero esta preocupação válida. E é muito válida quando pensamos nas variedades nativas. Qual seriam as soluções para diminuir a possibilidade de fluxo gênico, ou seja, a transmissão de genes da planta transgênica para as variedades nativas? Existem algumas alternativas moleculares para evitar o fluxo gênico, embora nenhum seja completamente eficiente e aplicável para qualquer espécie. O GURT faz isso. Caso o pólen de um transgênico contendo GURT fecunde uma planta nativa, embora até possa resultar em sementes com o gene exógeno, estas sementes não germinarão, eliminando a linhagem na hora. Não há chance de comprometer todas as variedades nativas.
Uma outra questão importante está relacionada com o uso de plantas como biorreatores, ou seja, plantas que produzem fármacos para uso em humanos. Com esta tecnologia, o gene inserido fica restrito ao seu “hospedeiro”.
E é basicamente isso que o PL 1117/2015 busca. Tecnologias de restrição de uso continuarão proibidas exceto:
“quando as tecnologias de restrição de uso forem introduzidas em plantas biorreatoras ou plantas que possam ser multiplicadas vegetativamente;”
ou
“quando o uso da tecnologia comprovadamente constituir uma medida de biossegurança benéfica à realização da atividade.”
Alguns podem concordar mais facilmente com o primeiro ítem (eu também). Mas podem argumentar que então vão comprovar que é benéfico em qualquer cultivar. Podem tentar, mas lembre que para ser liberado precisa passar pelo CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, o órgão que analisa as propostas das empresas desde antes dos primeiros testes começarem. E este órgão é formado por especialistas e representantes de várias áreas.
Também vão dizer por aí que isso impede a liberdade do produtor de segurar parte de sua colheita para plantar no ano seguinte. Oras, a maioria já faz isso há anos com plantações de milho. A maior parte do milho plantado no Brasil é híbrido. Híbridos são produzidos por cruzamentos entre linhagens diferenciadas, onde se explora o chamado vigor híbrido. Este vigor híbrido decai em 50% a cada geração, ou seja, você pode até guardar as sementes obtidas na sua plantação de milho híbrido, mas dificilmente conseguirá a mesma produtividade. Fica mais lucrativo comprar novamente a semente para a nova plantação. Ou seja, quem planta milho já está acostumado com isso.
Mas tem muita gente plantando linhagens criolas, ou seja, linhagens melhoradas de modo convencional, que são muito mais próximas das nativas ou as que os indígenas plantavam. Alguns argumentam que a tecnologia GURT vai acabar com isso.
Ora, tem que ter muita imaginação. Primeiro que quem planta as linhagens criolas vai poder continuar plantando as linhagens criolas, ninguém vai impedir. Quem as produz já acha que isso é um nicho de mercado. Além do quê, basta guardar as sementes, não é mesmo? Este agricultor já está fora do mercado padrão de alta produtividade. Já não é consumidor das sementes híbridas. Absolutamente nada vai acontecer com ele! Pelo contrário, GURT vai impedir que plantações transgênicas contaminem seus estoques criolos. Na realidade, estes produtores deveriam ser os primeiros a exigir que os transgênicos tenham mecanismos para impedir o fluxo gênico de modo efetivo.
Li em websites esquisitos por aí uma preocupação em que este GURT seja passado para plantas nativas contaminando, etc. Ok, digamos que aconteça. Qual o resultado? Nenhum. Esta é a grande vantagem do GURT e de outras técnicas de controle do fluxo gênico.
Enfim, mais uma vez, tenho sérias restrições à bancada ruralista. Mas não podemos deixar isso superar a racionalidade. Técnicas de restrição ao fluxo gênico são importantes para evitar tudo que muitos ambientalistas temem (às vezes com razão, às vezes não como ainda vou abordar em outra postagem). Economicamente não trará grande impacto em quem já produz grandes cultivares. E não trará prejuízo a quem quer plantar linhagens ou sementes criolas. Especialmente no caso do milho, se isso fosse problema o advento do milho híbrido já teria bagunçado tudo há anos.
Ótima complementação!
Parabéns pela postagem! Muito clara e desmistificante.
Gostaria de acrescentar um ponto. A segunda hipótese do uso do GURT prevê um benefício para a gestão do risco (ainda que não esteja escrito desta forma porque os que fazem as leis desconhecem a linguagem da avaliação de risco). Então, para que a hipótese se concretize é preciso que haja riscos não negligenciáveis. Se a gente olhar os pareceres da CTNBio vai ver que sempre os riscos foram considerados negligenciáveis e que as plantas transgênicas liberadas (e todo os demais OGMs, aliás) foram considerados tão seguros quanto seus equivalentes não transformados.
Sendo assim, não seria possível usar o GURT apenas para fins comerciais em plantas consideradas seguras. Tão simples quanto isso.
O GURT pode ajudar também nas etapas intermediárias de produção de sementes, mas isso é outro caso.
Cordialmente,
Paulo Andrade