Outro dia estava navegando para buscar imagens para minha aula de evolução de múltiplos locos quando me deparei com um texto de um site criacionista português. Tamanha foi minha indignação que passei um trabalho para os alunos da disciplina de Processos Evolutivos para que refutassem o texto, pois estava bem dentro da matéria que estávamos vendo. Aqui está o gabarito. Certamente alguns podem ter extrapolado minhas avaliações e terão notas extra para os próximos trabalhos.
No início o autor sinonimiza seleção genética com seleção de grupo, posteriormente dando a entender que seleção de grupo é o mesmo que a seleção de genes. Entretanto, estes termos não são sinônimos. Aliás, nem é comum se falar “seleção genética”. Quando se trata de seleção, uma das principais discussões em evolução é qual seria a unidade de seleção, o que a seleção estaria vendo? Genes como unidades de seleção são uma explicação, organismos são outra, grupos e famílias são outra. Apesar de em alguns casos serem compatíveis, muitas vezes são excludentes.
O texto parte de um trecho do livro de Stephen J. Gould, O Polegar do Panda, em que o autor comenta sobre a seleção atuar sobre um indivíduo como um todo e não sobre um conjunto de partes, como se esta afirmação fosse contrária à Teoria Evolutiva. Por que é que o autor do texto classificou Gould como marxista e não como paleontólogo e divulgador da ciência é uma questão bem interessante para se pensar. O que tem a ver ele ser marxista?
O primeiro problema é que Stephen J. Gould, um renomado evolucionista, paleontólogo e divulgador da ciência, está parcialmente correto. É fato que a seleção vai atuar sobre o indivíduo como um todo e é fato que é o conjunto de todas as partes que será visto pela seleção natural. Entretanto, mesmo as pequenas modificações podem ser objeto da seleção. Uma mutação na mariposa salpicada Biston betularia faz com que surja a forma melânica. Trata-se de uma característica do indivíduo como um todo, mas determinada por um único gene. A proporção dos alelos deste gene na população depende do quanto esta nova variação é benéfica ou problemática para a sobrevivência e reprodução de quem a porta. Experimentos demonstraram que os predadores desta mariposa predavam mais aqueles indivíduos que não conseguiam um bom mimetismo com o ambiente onde estavam, explicando o aumento da população de formas melânicas durante a revolução industrial, que jogou muita fumaça e foligem nas árvores, tornando as formas salpicadas visíveis aos predadores e escondendo as formas melânicas. Escrevi sobre este assunto em outro texto há algum tempo, que pode ser lido aqui.
Por outro lado, Gould está correto quando afirma que muitas características dos organismos são determinadas por vários genes. Esquece, porém, de afirmar que há vários genes que são unicamente responsáveis por várias características, o que conhecemos como pleiotropia. O gene que codifica o colágeno, por exemplo, é um gene pleiotrópico. Seu efeito é diferente, dependendo do tecido em que o colágeno é produzido e sua visibilidade pela seleção natural pode ser afetada por vários fatores independentes.
Agora, será mesmo que a herança poligênica é algo que possa ser usada “contra toda a teoria da evolução”?
Vejamos, evolução é: “herança com modificações” ou ainda “alteração na frequência de alelos de uma população ao longo das gerações”. Qual destas ideias a herança poligênica vai contra? Um grande erro de criacionistas iniciantes é pensar que evolução é sinônimo de chimpanzé virar homem. Em geral partem desta ideia e não conseguem ouvir o que todo evolucionista diz (e o que está escrito em todo livro texto de evolução). A questão para o biólogo evolutivo é exatamente de que forma estas variações surgem, como são transmitidas aos descendentes e o que é que faz com que sua frequência seja alterada ao longo das gerações. Quais os fatores e processos envolvidos? Será mesmo que a herança poligênica vai contra ou será que é mais uma ferramenta que possibilita o estudo destas variações?
Antes de destrinchar o exemplo tosco dado pelo autor, vamos a mais uma pérola: “mitologia neodarwinista”. Seria uma mitologia se não fosse uma teoria que propusesse constantemente hipóteses a serem testadas, formulando os métodos experimentais para tais estudos, tirando conclusões e descartando as hipóteses que não estivessem de acordo com os dados obtidos. Uma mitologia é algo que não pode ser questionada, pois simplesmente é assim. Uma leitura básica de algum livro texto de evolução é suficiente para descartar este tipo de comentário. Evolução é ciência. Qualquer um pode questionar pontos específicos (ou toda a evolução, se achar que tem argumento e dados o suficiente para tanto) da evolução de algum organismo, se tiver embasamento, pois isso é fazer ciência.
Enfim, vamos ao exemplo, que o autor achou que estava acabando com a teoria da evolução.
O autor sugere que imaginemos “uma nova característica benéfica que surge devido a uma combinação rara de cinco genes”. De acordo com o autor,
“devido à reprodução sexual cada gene tem 50% de hipóteses [sic] de vir a fazer parte da composição genética da descendência. Portanto, a característica que resultou dos cinco genes tem uma chance em 32 de ser herdada. Isto é uma probabilidade de 3%, e não os normais [sic] 50% quando apenas um gene está envolvido”.
Em primeiro lugar, aparentemente o autor está sugerindo que uma nova característica benéfica tenha surgido do nada e já com cinco genes. Nenhum, absolutamente nenhum geneticista ou biólogo evolutivo vai dizer que isso é um fato. Agora, podemos conjecturar que uma nova variação benéfica de uma determinada característica surgiu devido a uma combinação rara de cinco genes. Aí sim, podemos começar a conversar. Cinco genes aparecendo de repente dando origem a uma inteira nova característica realmente é algo dos livros de mitologia.
Que tal se usarmos um exemplo prático, da vida real? Borboletas do arquipélago malaio, da espécie Papilio memnon apresentam um polimorfismo (várias formas corpóreas diferentes para a mesma espécie) associado com um mimetismo. É uma espécie palatável que possui semelhança imensa com outras espécies que são tóxicas para o predador. Para resumir a conversa, descobriu-se que a característica do padrão, forma e coloração das borboletas é determinado por cinco genes (olha só que interessante – um exemplo real que bate com o que o autor estava sugerindo). Enfim, o que é visto pela seleção é todo este conjunto, que é determinado não por um único gene, mas cinco! Como isso é possível? Veremos adiante.
Outro problema é que o autor utiliza um cálculo extremamente simplista, que só vale se o gene estiver em heterozigose (o tal Aa que todo mundo lembra da escola). Se os dois alelos forem iguais (AA ou aa), a proporção da prole que herdará o alelo é de 100%. Relembrando um gene neste caso é um trecho de DNA responsável por uma característica e em organismos diploides (uma boa parte dos organismos vivos) possui em cada indivíduo uma combinação de dois alelos (um recebido de cada um dos parentais). O exemplo dado, na realidade, é excelente para demonstrar que mutação não é o único mecanismo capaz de gerar variação, a recombinação também é. Pelo exemplo dado, em um determinado momento apareceu uma combinação de alelos que possibilitou um efeito benéfico. A variação já existia, mas pelas questões até mesmo levantadas pelo autor do texto, a possibilidade de aparecer naquela combinação era baixa. Em uma grande população, isso tem seu efeito diluído, fazendo com que a combinação apareça.
Aí vem o que os criacionistas frequentemente esquecem, pois provavelmente não tiveram aula de genética de populações ou de evolução. Se tal alelo é benéfico, a probabilidade de que ele esteja na próxima geração já não é mais aquela do Mendel. Se existe qualquer efeito benéfico, existe seleção, e isso faz com que o genótipo selecionado tenha sua frequência aumentada na geração seguinte. Se estivéssemos tratando de um único gene, utilizaríamos o cálculo do equilíbrio de Hardy-Weinberg, que possibilita testar se algum fator está afetando a flutuação dos alelos nas populações ao longo das gerações. Se não existe seleção e não há cruzamentos preferenciais, a proporção dos alelos deve ser p2 + 2pq + q2, onde p é a frequência do alelo dominante e q a frequência do alelo recessivo. Se um alelo confere uma vantagem, é benéfico, ele vai dar um incremento na capacidade adaptativa da população, e aí adicionamos o coeficiente de seleção W multiplicando uma daquelas frequências. Mas é claro que isso é muito simples, e o autor afirma que não podemos explicar a herança poligênica.
Assim como o equilíbrio de Hardy-Weinberg é uma hipótese a ser testada de que não existe seleção ou outro fator que afete a flutuação das frequências de genes nas populações, quando tratamos de poligenes também temos uma hipótese a ser testada, pois estamos falando de evolução e evolução é ciência. A hipótese a ser testada é o equilíbrio de ligação.
Dois genes (ou dois locos) podem apresentar resultados de várias formas, mas é importante que cada um deles apresente variação para ser visto pela evolução. Lembre-se, evolução é a flutuação da frequência de alelos nas populações ao longo das gerações. Se um gene tem apenas um tipo de alelo, todos os indivíduos serão homozigotos e não haverá variação. Não tendo variação, não temos evolução. Uma delas é cada um afetar uma característica distinta. Como a cor e textura de ervilhas. São genes distintos, independentes e que não afetam um a característica do outro. Mesmo assim, estes dois genes independentes podem estar ligados (muito próximos no mesmo cromossomo, por exemplo, impedindo a recombinação e a distribuição independente) e a variação de um deles pode influenciar a distribuição do outro. Também podem determinar características independentes mas funcionalmente relacionadas, e aí, a flutuação de um gene afeta de modo diferencial a proporção ou flutuação do outro. Imagine uma via metabólica com dois passos, catalizados por duas enzimas diferentes. Uma delas pode ter uma variação que confere uma velocidade catalítica maior e assim influenciar a frequência do outro.
Outra forma em que dois locos podem interagir é pela responsabilidade em formar uma única característica. Um exemplo clássico é o das cristas das galinhas, determinada por dois locos, onde o alelo dominante de cada um deles é responsável por uma forma de crista (rosa para o alelo R e ervilha para o alelo P), uma terceira forma de crista aparece quando há pelo menos um dominante de cada gene (R_P_) e uma quarta forma de crista aparece quando ambos os genes são homozigotos recessivos (rrpp). Uma terceira forma de interação é quando dois ou mais genes afetam duas ou mais características – a pleiotropia. Neste caso a evolução das duas características é correlacionada e a mudança em cada loco é afetada pela seleção natural em ambos os caracteres.
Acredito que este último seja o caso do grande exemplo do autor do texto criacionista.
Pois bem, a hipótese do equilíbrio de ligação a ser testada é a de que dois ou mais locos são completamente independentes e sua proporção flutua ao acaso. Caso não seja assim, temos o desequilíbrio de ligação.
Vejamos o caso mais simples – dois genes (A e B) com dois alelos cada. Caro criacionista, eu sei que você quer ver os casos mais complexos, mas tenho síndrome de professor, e não consigo explicar algo complexo sem primeiro explicar o mais simples. A partir desta explicação, você pode tirar as próprias conclusões para os casos complexos.
Nos estudos de genes simples, utilizávamos a frequência de cada alelo (a ou A), pois um deles é passado para o descendente. No estudo de mais de um loco precisamos levar em consideração cada um dos genes (A e B), ou seja, o gameta vai portar um haplótipo, ou um conjunto haploide dos genes que estamos estudando. Vamos escrever as frequências dos haplótipos observadas em termos de frequências gênicas em cada loco. Vamos utilizar A1 e A2 para os alelos do loco (gene) A e B1 e B2 para os alelos do loco (gene) B.
Considere a frequência gênica na população de:
A1 = pA
A2 = qA
B1 = pB
B2 = qB
Então, em equilíbrio de ligação temos:
No equilíbrio de ligação, a frequência de cada haplótipo é a multiplicação da frequência de cada um dos alelos. Ou seja, a frequência do haplótipo A1B1 = pAqA.
Bom, mas e se existe algo que está fazendo com que o alelo A1 preferencialmente seja encontrado com o alelo B2 e não com o B1? Aí temos o desequilíbrio de ligação. A medida em que os valores se afastam do equilíbrio é a variável D, um fator de correção, que é positiva para um dos haplótipos na mesma medida em que é negativa para o correspondente, como podemos observar aqui:
Desta forma, o valor de D será zero se houver equilíbrio de ligação.
Extrapole agora isso para cinco genes com dois alelos. Ou dez genes. Não importa, funciona da mesma forma. O exemplo das frequências e probabilidades dado pelo autor é algo que acontece se, e somente se, houver equilíbrio de ligação. E se houver equilíbrio de ligação, possivelmente não há um haplótipo ou conjunto de genes com efeito benéfico para o organismo. Por sua vez, o autor considera que em determinado momento, uma dada combinação dos alelos destes cinco genes foi benéfica, ou seja, é inevitável que isso influencie em sua frequência. Esta variável é que parece nunca entrar na cabeça dos criacionistas. A partir do momento em que detectamos o desequilíbrio de ligação, precisamos buscar o porquê.
Desequilíbrio de ligação tem várias causas, mas é importante ressaltar que ele desaparece à medida em que acontece recombinação se não houver seleção natural. A principal causa do desequilíbrio de ligação é a seleção natural. Se a seleção favorece indivíduos com combinações particulares de alelos, produz desequilíbrio de ligação. É o que o autor sugere com seu exemplo, mas que por algum motivo esquece de levar em consideração. Outra causa é a ligação (genes muito próximos em um mesmo cromossomo) – Para locos ligados, é necessário um grande número de gerações para a recombinação torna-los aleatórios. Outra causa é a deriva aleatória – o acaso pode gerar um excesso de determinado haplótipo em uma geração, e, com isso, surge o desequilíbrio de ligação. Por fim, também podemos atribuir o desequilíbrio de ligação a cruzamentos não aleatórios – se indivíduos com alelo A1 tendem a cruzar com tipos B1 ao invés de B2, os haplótipos A1B1 terão frequência em excesso.
Enfim, ao invés do modelo simplista colocado pelo autor, que considera um exemplo em equilíbrio de ligação e, por conta disso, sem nenhum papel da seleção natural – ou seja, tal combinação não poderia ser benéfica, vemos que a análise é outra. Talvez por isso os evolucionistas tendam a explicar o que acontece com apenas um gene, não por ser mais fácil de explicar, mas por ser mais fácil para compreender.
A afirmação seguinte no texto do autor quase me fez ter uma crise:
“Se uma fêmea tem em média menos de 32 descendentes (o que é a norma entre os vertebrados superiores), então a característica poligênica desapareceria rapidamente. É devido a isso que os traços corporais que envolvam muitos genes são embaraçosos para a teoria da evolução.”
Vamos assumir que o exemplo simplista está certo, que aquela combinação vantajosa acontece em uma proporção de 1/32. De onde foi que ele tirou que isso significa que vai acontecer apenas uma vez a cada 32 nascimentos??? Nas aulas de genética fazemos de tudo para ensinar que esta não é a proporção que observaremos, mas a probabilidade para CADA nascimento. Se fosse da forma como o autor está dizendo, toda família que tivesse primeiro um filho menino, obrigatoriamente o segundo filho seria menina, pois a probabilidade é de ½!
Mais uma vez, como eu já escrevi antes, em populações grandes uma combinação mais favorável tem mais chances de aparecer do que em populações menores. No entanto, a partir do momento em que aparece, sua frequência será aumentada por um fator W que representa o quanto isso foi benéfico para a população. Já era esse cálculo. Com a seleção, a evolução deixa de ser aleatória. Seleção natural não é ao acaso, pelo próprio princípio embutido na ideia. Tenho um outro texto sobre este assunto também neste link.
Enfim, o autor exige mais explicações dizendo que o modelo poligênico atrapalha a ideia da evolução, mas não se dá ao mínimo trabalho de estudar a genética de populações básica.
Vamos voltar às borboletas do exemplo real que dei anteriormente. Os desequilíbrio de ligação é tão forte que favoreceu a ligação dos genes – estão todos os cinco no mesmo cromossomo, o que dificulta a ação da recombinação para serem quebrados (lembra que escrevi que a recombinação quebra a ligação?).
Assim, longe de ser algo embaraçoso, o estudo da genética de populações de múltiplos locos e caracteres quantitativos nos fornece subsídios excepcionais para explicar a biodiversidade e sua evolução. Sim, muitas características são determinadas por poligenes e herança quantitativa (aliás, nem abordei a herança quantitativa que é outra coisa, pois o autor nem tocou neste assunto, se atendo à questões populacionais mesmo que simplistas), mas temos uma boa noção de como isso acontece, basta pegar um simples livro texto de evolução para ter uma ideia.