Monstros S.A. Aula de senso crítico e ciência

Pai de criança pequena vira e mexe precisa assistir animações com a prole. E muitas vezes isso não é motivo para reclamar, tendo em vista a qualidade das animações ultimamente, tanto em termos tecnológicos quanto em termos de conteúdo. E há alguns casos em que se pode tirar lições interessantes que talvez nem tenham sido cogitadas pelos autores.

Rever um filme (claro, pois com crianças nunca se assiste a um filme uma única vez) é uma estratégia interessante para sair da trama básica e vislumbrar os outros sentidos da história. Foi assim que percebi que Monstros S.A. é uma aula de ciências e pensamento crítico.

Para quem ainda não viu o filme (sério? Alguém ainda não viu?), paciência, teremos spoiler. Trata-se da existência de um mundo paralelo, o mundo dos monstros, que obtém a sua energia através dos gritos das crianças. Os monstros atravessam uma porta específica que dá acesso ao nosso mundo diretamente no quarto de uma criança. Eles assustam a criança e seus gritos enchem reservatórios de energia no mundo dos monstros. A confusão acontece quando uma criança entra no mundo dos monstros.

Podemos no filme observar duas questões sobre pensamento crítico e ciência – o dogma e o paradigma.

Dogmas são conceitos de religiões ou ideologias consideradas fundamentais ou indiscutíveis. No filme existe o dogma de que crianças são tóxicas e um monstro não deve jamais deixar que uma criança a toque. Nenhuma evidência sustenta esta crença. Simplesmente o toque de uma criança em um monstro causa um ataque de pânico e desencadeia as ações de uma organização que tem o objetivo de limpar a cena. Como acontece com muitos dogmas de religiões e ideologias, nem passa pela cabeça dos monstros questionar esta verdade. O que existe é o medo irracional de tocar em uma criança.

E há um paradigma. Paradigmas são conceitos que definem algo ou representam um modelo a ser seguido. O paradigma vigente é o de que o grito das crianças produz energia. Isto não é um dogma, visto que efetivamente o grito das crianças produz energia para o mundo dos monstros. Dentro do conceito científico, é uma explicação que funciona, que resolve um problema. O que não significa que seja uma verdade absoluta. Em ciência, podemos resolver problemas apelando para paradigmas vigentes sem que, necessariamente, esta seja a única solução possível. Muitas vezes é a única solução daquele momento.

Paradigmas podem ser questionados e quebrados, levando à formulação de novas hipóteses que podem ser testadas originando teorias mais bem fundamentadas. Estas teorias quando fortalecidas por apoio do grupo acadêmico ou se mostrando mais eficientes podem vir a constituir novos paradigmas.

O vilão da história de Monstros S.A. é um destes que testa os paradigmas. Sua intenção é obter uma forma mais eficiente de produção de energia raptando uma criança e a torturando indefinidamente para produzir energia. Isso diminuiria a necessidade de muitos monstros assustadores acessando o quarto de crianças no meio da noite e evitando os problemas do dogma. Menos riscos, bem como menos despesas.

Como acontece na ciência, eventualmente algumas descobertas são ao acaso. Os protagonistas Sully e Mike percebem duas coisas. A primeira, é que o dogma de que crianças são tóxicas é falso. Rapidamente eles deixam de ter esta preocupação e passam a se preocupar mais com o fato da criança estar presente no mundo deles. A quebra do dogma faz com que eles observem outras coisas que eram mascaradas pela cegueira dogmática. Tal qual como acontece quando nos livramos de certos dogmas, sejam religiosos ou ideológicos.

E a segunda descoberta é a de que o riso da criança produz muito mais energia que seus gritos. Isso acontece por acaso, mas em pouco tempo é percebido como um padrão pelos protagonistas, levando ao desenvolvimento de uma nova tecnologia. Agora, ao invés de entrar nos quartos para assustar, eles entram nos quartos para divertir as crianças. E com esta quebra de paradigma vem grandes mudanças, como, por exemplo, o papel de cada um na sociedade. Sully é o amedrontador, campeão de tirar gritos das crianças. Mas não consegue ser engraçado. Mike, por sua vez, tenta assustar mas é muito mais eficiente em fazer rir.

Quebras de paradigmas muitas vezes são temerosos por sua possibilidade de mudança no “status quo”. Quebrar um paradigma pode significar necessidade de adaptação à nova realidade.

O filme é extremamente divertido, mesmo sem parar para fazer esta análise. Vale a pena ser assistido inúmeras vezes.

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