Continuando a série sobre os Astyanax iniciada semanas atrás. Já comentei quem são eles e um pouco da problemática. Mas o que os faz tão interessantes a ponto de haver um evento internacional acontecendo neste momento no México? E o que estou fazendo aqui?
O México é cheio de cavernas. Em muitas delas existem peixes. E em várias delas existem peixes do gênero Astyanax. Algumas populações destes peixes são completamente desprovidos de pigmentação e não apresentam olhos. A explicação mais simples é que peixes de superfície colonizaram as cavernas e aos poucos perderam pigmentação e perderam seus olhos. Isso não acontece porque não são úteis no escuro (uso e desuso) como diriam alguns, mas sim porque mutações que afetam o desenvolvimento dos olhos ou a pigmentação não são selecionadas negativamente. Ou seja, indivíduos cegos, dentro de uma caverna, se analisarmos estritamente o poder visual são tão ágeis ou capazes quanto os que enxergam. Entretanto, além deste diferencial existem outros que tornaram os peixes cegos mais aptos a este ambiente, como maior sensibilidade olfativa, por exemplo.
Mas o que dizer sobre a origem destes peixes dentro das cavernas? Há várias cavernas, em cada uma delas houve regressão de olhos e constituição de demais características troglomórficas? Ou será que estes acontecimentos surgiram uma vez e depois foram dispersas nas várias cavernas?
Luís Espinasa é um pesquisador que cresceu próximo às cavernas mexicanas e me parece ser o responsável por descobrir peixes em pelo menos uma delas, a caverna Guerrero (iríamos visitar esta caverna após o evento mas por alguns problemas incluindo a violência no México optaram por ficarmos na região de Ciudad Valles). Ele apresentou no evento questões interessantes sobre a origem dos peixes de caverna e como o paradigma acerca disso tem mudado ao longo do tempo.
Nos anos 70, estudos utilizando marcadores chamados isoenzimas (um dia escrevo algo sobre os marcadores moleculares) pesquisadores encontraram alelos compartilhados por três populações de caverna e que não eram observados em populações de superfície. Isto evidencia uma origem comum para os peixes de caverna em geral. Este paradigma permaneceu e fortaleceu com estudos posteriores utilizando outros marcadores moleculares nucleares como o RAPD (Polimorfismo de DNA baseado em amplificações aleatórias).
Por outro lado, estudos utilizando sequencias de genes mitocondriais evidenciaram haver duas rotas colonizatórias para cavernas específicas a partir de invasão da superfície. Uma seria mais antiga e teria colonizado três cavernas e a outra, mais recente, colonizado pelo menos outras três. Ou seja, haveriam duas linhagens. Ao que parece, as populações de superfície encontradas atualmente são mais próximas daquelas de caverna que teriam sido colonizadas posteriormente. Isto significa que os antigos habitantes da superfície devem ter sido deslocados, substituídos pelos que chegaram depois. Isto não é de se espantar, pois uma das características de espécies invasoras é que se conseguirem se manter no ambiente, provavelmente vão aumentar sua população e suplantar espécies competidoras que estiverem no local. Segundo os pesquisadores, os peixes desta linhagem nova são mais agressivos que os supostamente da linhagem antiga.
Achei estas informações bastante interessantes, pois vão de encontro com meu trabalho de mestrado. No mestrado estudei uma outra espécie, Hoplias malabaricus (Erythrinidae), que muitos conhecem como traíras. Realizei estudos em citogenética de traíras coletadas na planície de inundação do rio Paraná, uma região logo acima de onde seriam as Sete Quedas, que foram submersas com a construção da barragem de Itaipu. Sete Quedas separava duas províncias ictiofaunísticas, a do Alto Paraná e a do Baixo Paraná (ou Paraguai). Pesquisas lideradas por quem foi posteriormente meu orientador de doutorado, o prof. Luiz Bertollo, tinham demonstrado que havia traíras com dois tipos de constituição cromossômica no Alto Paraná. Uma delas ambos machos e fêmeas tinham 42 cromossomos. E a outra, o macho tinha 39 cromossomos e a fêmea 40. Sei que é difícil conceber isso, principalmente para aqueles que acreditam que sempre temos fêmeas com cromossomos XX e machos com cromossomos XY. Pois bem, lhes apresento o que chamamos de Sistema Cromossômico Sexual Múltiplo. A fêmea é X1X1X2X2 e o macho é X1X2Y. Posso entrar nestes detalhes posteriormente, até porque, saber que há diferenças já é suficiente para entender onde quero chegar. No baixo Paraná, por outro lado, havia sido documentada a ocorrência de uma outra forma cromossômica (que na realidade chamamos de citótipo), a de 40 cromossomos tanto para machos quanto para fêmeas. Pois bem, já havia sido relatada a ocorrência de invasão de várias espécies que estavam na região do baixo Paraná e começaram a habitar a região do alto Paraná após a construção de Itaipu, pois esta deslocou o ponto de separação em mais de 150km abaixo das Sete Quedas, misturando muita coisa. Em meu mestrado, encontrei na região do Alto Paraná, os três tipos que estou comentando aqui, ou seja, tanto as formas originariamente pertencentes ao alto Paraná quanto a forma pertencente ao baixo Paraná. O problema é que é praticamente impossível distinguir morfologicamente (parece que alguns pesquisadores já estão conseguindo isso agora, mas na época não era possível) entre cada um dos citótipos. ou seja, quando se pega uma traíra, não sabemos que tipo de traíra é. A implicação disso virá neste blog um dia.
Pesquisas posteriores elaboradas pelo grupo de geneticistas da UEM, baseados em meus dados cromossômicos, conseguiram marcadores específicos para cada citótipo, permitindo fazer análises de populações maiores sem ter que fazer todo o estudo cromossômico. Eles descobriram que o citótipo invasor, o 40/40, tornou-se predominante em alguns anos. Eu já havia observado isso. Levei sorte de conseguir os demais citótipos.
Pois bem, voltando aos Astyanax, é bem plausível esta observação das duas colonizações. Por outro lado, marcadores de microssatélites parecem retornar a questão para uma única rota de colonização. Espinasa também falou um pouco sobre os aspectos da geologia da região e o tempo de formação de cada caverna. Enfim, a questão ainda está em aberto, mas eu, particularmente, tenho algumas perguntas que preciso pesquisar um pouco mais para tentar responder. A taxonomia dos peixes no México é muito confusa. Durante muito tempo chamavam os Astyanax mexicanus de Astyanax fasciatus, que tem como localidade tipo “rios do Brasil”, como já comentei. Ao sul do México existe outra espécie, o Astyanax aeneus que, supostamente, também tem formas de caverna. Como estão os cromossomos destas espécies? Como estão os cromossomos das diferentes populações? Não sei. Talvez os cromossomos possam ajudar a esclarecer um pouco da história natural destes peixes, talvez não. No próximo texto vou comentar como andam os estudos sobre expressão gênica e biologia do desenvolvimento destes peixes e é preciso ponderar se podemos contribuir em algo com nossos estudos cromossômicos ou toda a parafernália da Evo-Devo é suficiente para dar a explicação final.