
Em tempos de negacionismo climático, movimento antivacinação, antievolucionismo e várias outras ações anti-intelectualistas que temos visto, chega a ser paradoxal fazer uma crítica de um texto que tem como título “Ignorar a biologia não a torna menos real” do professor Walter E. Williams com tradução publicada no jornal Gazeta do Povo (publicação em português tem paywall, por isso preferi deixar o link para a publicação original, mas basta uma busca pelo título que você encontra o texto facilmente). Afinal, eu concordo plenamente com o título. Seria o título perfeito para falar sobre aquecimento global, vacinas ou evolução. O problema é que só é possível concordar com o título, e nada mais. Toda a argumentação do texto se baseia em uma supersimplificação da biologia que está muito aquém do conhecimento que temos hoje.
Pesquisadores das Ciências Humanas possuem outras explicações para as questões da sexualidade, mas na minha opinião elas não são excludentes em relação às explicações biológicas, talvez complementares. Isso porque sabemos que o fenótipo (as características observadas) é produto do genótipo (o que está escrito nos genes) e do ambiente. Em alguns casos, o potencial do genótipo é maior, em outros é menor. Além disso, o fato de “termos genes para algo” não significa que iremos apresentar o fenótipo.
Dito isso, vale entender o que a biologia tem a dizer sobre as questões da sexualidade. No texto citado, o autor usa a biologia de modo conveniente para respaldar sua opinião de que nascemos homens ou mulheres conforme nossos cromossomos sexuais. Ele não é o único a ter esse pensamento equivocado. No Brasil mesmo temos fundamentalistas que insistem em usar este argumento para embasar suas crenças de que a biologia (ou a natureza) nos faz heterossexuais, homens ou mulheres cis. Com isso tentam convencer que sua discriminação teria uma base científica, biológica.
Quando se reduz tudo aos cromossomos ditos sexuais, o X e o Y, esquecemos de todos os outros 22 pares que na realidade possuem a maior parte das características que julgamos relacionadas com a sexualidade. Cromossomos nada mais são do que moléculas de DNA organizadas com proteínas e cada molécula de DNA (ou cromossomo) pode ter centenas de genes. Uma molécula de DNA está sujeita à mutações, que são alterações em sua estrutura produzindo formas variantes dos genes. E o DNA dos organismos vivos é muito variável em qualquer trecho ou cromossomo que você observe. Essas variações no DNA podem não ter efeito algum na característica observada, podem promover uma pequena alteração inócua, assim como podem causar alterações severas e impactantes como no caso de milhares de doenças genéticas conhecidas. A combinação dessas variações nos torna indivíduos únicos.
Em todo caso, usar a biologia para negar direitos civis às pessoas é um absurdo. Especialmente quando usamos uma biologia equivocada, como pensar que os cromossomos sexuais X e Y são inteiramente responsáveis por todos os aspectos da sexualidade humana. O cromossomo Y possui um gene responsável por desenvolver genitália masculina (escroto com testículos e pênis) em mamíferos após a 12a. semana de gestação. Antes disso somos todos iguais.
As características sexuais secundárias, no entanto, são bem mais relacionadas com questões hormonais, como a testosterona, por exemplo. A testosterona é o conhecido hormônio masculino, mas não é exclusivo de homens. Também é produzido nos ovários. Ou seja, os genes responsáveis pelas cinco etapas de conversão do colesterol em testosterona não estão no cromossomo Y. E são cinco etapas sujeitas à variação nos genes. Sem o cromossomo Y será formada um aparelho reprodutor com genitália feminina, vagina, útero e ovários. Isso não diz absolutamente nada sobre as demais características inerentes à sexualidade como a atração sexual ou a forma como a pessoa se vê. Uma pessoa pode se sentir alta, baixa, magra, gorda, feliz ou triste sem realmente aparentar isso mas você não impede uma pessoa magra de frequentar academia porque ela se sente gorda. A forma como as pessoas se vêem ou se sentem são questões neurológicas de foro íntimo.
Por outro lado, as regras da atração envolvem uma série de hormônios como a própria testosterona, oxitocina, entre outros. Estes hormônios, bem como os neurotransmissores e a própria estrutura do sistema nervoso central, são produtos de genes e, por conta disso, sujeitos à variação. Da mesma forma que a construção da pessoa como ser humano também é dependente do contexto social em que ela vive, que pode até mesmo interferir nos componentes genéticos através do que conhecemos como epigenética.
O fato de conhecermos a biologia nos permite discriminar pessoas por conta da variação que ela apresenta? Ou limitar direitos civis? Por exemplo, existe uma variação em um gene que faz com que uma pessoa sinta um gosto muito ruim no coentro. Ela simplesmente não consegue comer nada que tenha coentro fresco. Podemos obrigá-la a comer um belo prato cheio de coentro? Temos esse direito? Podemos impedir que ela exerça seus direitos civis, que case-se com outra pessoa que também tem intolerância ao coentro?
Cromossomos, por sua vez, também podem pregar peças. Acontece de uma pessoa ter um cromossomo grudado na ponta de outro. Chamamos de fusão. Essa pessoa não apresenta problema algum pois todos os seus genes estão ali. Porém, a formação dos gametas podem ser alteradas carregando duas ou nenhuma cópia de um cromossomo onde deveria haver apenas uma. Essas pessoas com essa variação cromossômica são menos humanas? Merecem ter seus direitos civis negados? Por que então queremos negar direitos civis à quem tem determinadas variações, sejam cromossômicas, sejam no DNA ou mesmo na forma como esse DNA se expressa?
Se podemos tolerar algumas variações, porque não podemos tolerar outras? Eu quero poder evitar um prato com coentro para não ter que sentir gosto de sabão na comida. Não tenho esse direito? Se é para trazer a biologia para a discussão (e acho que ela não pode ser ignorada, pois ela existe, não é mesmo?), então devemos fazer isso da forma correta, utilizando todo o conhecimento biológico que acumulamos ao longo dos anos.