Sem dúvida alguma o remake da série Cosmos é a melhor notícia do ano quando estamos falando de divulgação científica. Estou certo de que existem inúmeros blogs discutindo e elogiando esta superprodução. Até por isso, vou pela contramão.
Não é de hoje que eu discuto questões sobre o uso de certas licenças poéticas para divulgar ciência, o que podemos chamar de licença científica. O problema não é fazer grandes metáforas ou analogias, pois isso muitas vezes é necessário para que as pessoas possam melhor compreender alguns assuntos. O problema, no meu modo de ver, é usar um termo consagrado, que tem um significado específico, para explicar outras coisas relacionadas. Este tipo de ação acaba confundindo o leitor no momento em que se precisa utilizar o termo correto.
Uma das minhas principais brigas é com o termo “código genético”. Meus alunos da disciplina de Biologia Molecular sabem muito bem disso. Cai em toda prova uma notícia de jornal utilizando este termo e eu peço a eles que discutam se o termo está correto ou errado. E não é de hoje que tenho essa teimosia com este termo. Em 2007 escrevemos um texto para o Observatório da Imprensa, e em 2012 apresentamos um trabalho no Congresso Brasileiro de Genética discutindo como o termo “código genético” é mal utilizado no jornalismo não especializado.
Para resumir o que foi escrito no Observatório, o que insisto é que “código genético” é uma relação entre o DNA e a proteína produzida a partir das informações que estão nele. Pense no DNA como uma língua e a proteína como outra língua. Ambos possuem informação e há uma relação entre elas. Quando queremos traduzir um texto de uma língua para outra usamos um dicionário (ok, usamos o tradutor do Google, mas você entendeu). O dicionário é um livro que tem a palavra em uma língua e o significado dela em outra. É isso que é o código genético. Nele temos a palavra em uma língua (a sequência dos nucleotídeos do DNA – as unidades básicas da molécula de DNA) e seu significado em outra língua, o aminoácido correspondente. Três letras (nucleotídeos) são necessários para formar uma palavra na língua do DNA, e chamamos esta sequência de três letras de códon. Um códon significa um aminoácido. A sequência TTT, no DNA, por exemplo, significa que na proteína será incorporado o aminoácido fenilalanina.
Ninguém confunde o dicionário com o texto que vai ser traduzido. Por que é que jornalistas em geral e muitos divulgadores de ciência chamam o texto de dicionário, quando não é? Não tenho resposta para esta pergunta. Quer se referir a uma sequência de nucleotídeos no DNA, fale de letras, livros em uma estante, sei lá, mas não de código genético, pois isso é outra coisa tão intimamente relacionada que acaba confundindo tudo.
E acham que sou chato falando sobre isso? Posso, por exemplo, chamar a Lua de estrela? Não tem problema se eu disser que a Terra é orbitada por uma estrela, a Lua? Não é a mesma coisa? Então, astrônomos, jornalistas e quem mais queira saber, código genético é código genético, sequência de DNA é outra coisa, genoma é outra coisa. E eu não sou o único a pensar assim. Sem falar em uma busca bem feita no Google Acadêmico, veja esta notícia do New York Times, o único veículo que já vi se retratando por chamar de código genético o que deveria ser genoma. Vejam a correção no final do artigo.
Bom, mas e o que isso tem a ver com Cosmos?
Assitindo à versão dublada do segundo episódio da nova série que está sendo transmitida pelo canal National Geographic Brasil, ouvi Neil deGrasse Tyson falar “código genético” e achei estranho. Pensei que poderia ser um problema de tradução e dublagem. Aí fui ver a fonte:
“If life has a sanctuary, it’s here in the nucleus which contains our DNA… the ancient scripture of our genetic code.”
“Se a vida tem um santuário, é aqui no núcleo que contém nosso DNA… a antiga escritura de nosso código genético.”
(Segundo episódio do novo Cosmos, por volta dos 10m49s)
E também:
“Inside the liquid of the nucleus, the molecular letters of the genetic code float freely.”
“Dentro do líquido do núcleo, as letras moleculares do código genético flutuam livres.”
(Segundo episódio do novo Cosmos, por volta dos 12m25s)
E, por fim:
“But differences between us and life found in even the most extreme environments on our planet are only variations on a single theme, dialects of a single language. The genetic code of Earth life.”
“Mas as diferenças entre nós e a vida encontrada nos mais extremos ambientes do nosso planeta são só variaçõe de um mesmo tema, dialetos de uma única linguagem. O código genético da vida na Terra.”
(Segundo episódio do novo Cosmos, por volta dos 34m25s)
Em todos os trechos o sentido que Neil quer dar ao “código genético” é a sequência dos nucleotídeos do DNA. Em nenhum dos trechos ele está se referindo a como uma sequência de DNA é traduzida para formar uma determinada proteína.
Óbvio que ninguém é infalível. Só não entendo como superproduções como esta não podem pagar uma consultoria de alguém que sabe do assunto. Enfim, frustrei, sim. Mas continuo recomendando e continuo aguardando ansiosamente pelo próximo episódio.