
Este conto pode ser baixado em formato epub pelo menu superior ou lateral, mas vou postar aqui também para que você possa ler facilmente no navegador, uma vez que é um texto relativamente curto. Ele está à venda na Amazon, embora seja gratuito aqui. Como não tenho intenção de criar best sellers ou ganhar o prêmio Nobel de literatura, a única coisa que peço em troca dessa leitura é que você avalie o texto no site da Amazon. Que tal, pode ser?
Aquela manhã havia começado como todas as outras. Um dia de inverno, levemente nublado, um vento frio fazendo com que as pessoas tivessem que utilizar pelo menos uma jaqueta ou moletom. Uma manhã comum, e uma costumeira preguiça de sair de casa. Com este clima, mesmo após uma boa noite de sono, a vontade que fica é a de permanecer debaixo das cobertas. Mas o Sol estava nascendo, era hora de despertar. Lentamente ele desceu a escada e foi tomar seu café com a família, após lavar o rosto rapidamente na água fria. Infelizmente falta um bom tempo para as férias, então é mais um dia de trabalho.
Há poucos fusos horários dali o sol já estava alto. A baixa altitude e a alta umidade tornavam o dia sufocante, abafado, mesmo neste início de inverno. E o ônibus lotado não tornava as coisas melhores. Faltam apenas dois pontos, mas este congestionamento… Do lado um senhor lendo uma revista. Um ligeiro olhar para cima e a costumeira feição do “não tenho nada a ver com isso” de quem consegue assento. Vai chegar atrasado outra vez, mas quem é que diz que é possível sair mais cedo de casa?
Em outro ponto do planeta, ela cuidadosamente dirigia até a escola dos filhos. As crianças no banco traseiro ainda estavam um pouco sonolentas. Menos a mais nova, que acordou uma hora antes do habitual e estava absolutamente energizada. Tentava inutilmente animar a irmã mais velha empurrando seu ombro de tempos em tempos. A escola não era longe, mas era tempo o suficiente para atazanar a irmã até ela acordar de verdade. O sinal verde marcou o reinício. Mais algumas quadras e deixaria as crianças na escola para seguir ao trabalho.
Em outra parte do mundo, o voo estava tranquilo até o momento. Era um voo curto em uma noite de verão. Céu limpo, cidades iluminadas ao se olhar pela pequena janela. O comandante dá os recados corriqueiros de velocidade, altitude e a cidade a qual estão sobrevoando no momento. Pouso previsto para menos de uma hora. Em alguns instantes a equipe iniciaria os trabalhos de venda de lanches e bebidas à bordo.
Em todas as partes do mundo tudo corre normalmente. Um nascimento aqui, uma morte ali, um assalto à mão armada, uma noite com a pessoa amada ou um dia de trabalho. O café da manhã com a família, o chegar atrasado à escola ou ao trabalho, o levar os filhos para a escola ou o dia de trabalho pesado na construção. Até mesmo o não fazer nada de quem não tem nem trabalho, nem comida ou mesmo esperança. Até acontecer o que muitos esperavam, mas que de forma alguma tornaria tudo mais fácil.
Em todas as partes do mundo o relato foi o mesmo. Uma espécie de transe de modo repentino, atingindo todas as mais de sete bilhões de pessoas do planeta simultaneamente. Em uma fração de segundo ninguém mais viu o mundo à sua volta, os prédios, casas, automóveis. Ninguém mais ouviu nada. Um silêncio e o vazio se abrindo diante dos olhos ainda se acostumando com o brilho surgindo na escuridão. Ao mesmo tempo um sentimento de paz e tranquilidade. O fim daquela dor de cabeça, da dificuldade na respiração causada por uma doença terminal. Como um milagre repentino, cegos estavam vendo e surdos estavam ouvindo o mesmo que todos. Um som familiar surgindo do silêncio profundo. Um som tranquilizante. E uma voz. De algum modo aquela voz parecia familiar. Era agradável, doce. Ou será que era apenas um efeito da atmosfera geral? O ritmo era de uma conversa entre amigos, mas o efeito na audição era de algo mais. Toda a atmosfera estava diferente, envolvente, tranquilizante. Do som à luminosidade, aos cheiros, à voz.
“Saudações, terráqueos. Achei que vocês gostariam de ser chamados assim. Meu nome é… Bem, isso não tem importância. Também, eu não consegui traduzir meu nome para nenhum de seus idiomas, talvez pela forma como vocês desenvolveram as habilidades de comunicação. Eu sou o que vocês chamariam de criador. Sim, o seu universo realmente foi criado, mas temo que não tenha sido da maneira como vocês imaginaram. E é justamente por causa desta criação que estou me dirigindo a vocês hoje. Neste momento, todas as pessoas humanas e não humanas do que vocês conhecem como planeta Terra estão me ouvindo. E estão ouvindo absolutamente a mesma coisa, nas diferentes linguagens e modos de comunicação que vocês desenvolveram. Conheço todas as suas perguntas e dúvidas. Hoje é o dia em que vocês terão algumas respostas. Muitos de vocês precisarão de tempo para assimilar tudo o que vou dizer neste momento, mas não há como ser mais verdadeiro e direto”.
Se existisse um observador externo, neste momento veria algo surpreendente. O mundo inteiro estava parado. Pessoas congeladas e absolutamente imóveis, paralisadas durante os movimentos do cotidiano. Aviões, helicópteros, carros, tudo parado no mesmo instante. Era noite no subúrbio e um assalto mal sucedido culminava em uma bala diretamente na direção da vítima. Suspensa no ar. Entretanto, não há observador externo. Nenhum, exceto a voz.
“Sim, eu sou capaz de ouvir cada um de vocês e responder a cada um de vocês. Sou capaz de interferir no andamento da vida de cada um. Poderia auxiliar em suas muitas escolhas ou nas suas dificuldades. No entanto, eu jamais fiz isso. Em nenhum momento na história deste planeta houve uma única interferência minha. Não estava do lado de nenhum vencedor de grandes guerras, da mesma forma que não abandonei nenhum dos perdedores. Não salvei crianças de acidentes como também não tirei seus familiares antecipadamente. Interferir no andamento da história da vida neste planeta jamais foi minha intenção. Isso também significa que em nenhum momento algum de vocês foi nomeado meu porta-voz. Absolutamente todos que um dia disseram ter um contato comigo mentiram ou foram iludidos por artefatos físicos. Nenhum organismo vivo desenvolveu até hoje um sentido que pudesse identificar minha presença de alguma forma, de modo que quando vocês assim afirmam, isso não passa de ilusão, não passa de circulação hormonal aleatória ou induzida por fatos do cotidiano. Esta é a primeira, e será a única vez, em que entro em contato com vocês. Por isso mesmo o faço simultaneamente, com todos os que tem capacidade de compreensão, mesmo que potencial.
Uma vez que é impossível ter qualquer contato comigo até hoje, tudo o que vocês conhecem como seitas ou religiões não passa de ilusão. Não são em meu nome as promessas de salvação ou de uma eternidade de sofrimento. Na verdade, lamento em dizer-lhes que não há pós-vida, da mesma forma que não é possível que alguém ressuscite ou volte à vida no que vocês chamam de reencarnação. Eu jamais ditei regras de moral ou de conduta, mandamentos ou ensinamentos. Também não comando ações da natureza, como tempestades, terremotos, vulcões, raios ou tsunamis.
Enfim, eu criei o seu universo. Criei de uma forma muito parecida com o que a ciência humana conseguiu decifrar. Ainda faltam alguns detalhes para que todos os cálculos alcancem a complexidade daquele momento, mas acredito que vocês consigam estas informações em algum tempo. Acompanhei a origem da vida no planeta de vocês, mas não tive papel direto nisso. Como não tive papel no direcionamento dos processos da evolução que levaram ao surgimento de toda biodiversidade do planeta Terra, incluindo humanos e demais pessoas não humanas. Entretanto, tenho acompanhado seus últimos milhares de anos com muito entusiasmo. Foi incrível observar a forma como os humanos elaboraram ideias sobre suas origens. A forma como explicações fantásticas nasceram e pereceram por questões políticas ou sociais. A forma como explicações racionais se desenvolveram quando grupos dominantes a coibiam. E a forma como o desenvolvimento de ferramentas do que vocês chamam “método científico”, associadas à razão, culminaram em um florescimento sem igual do conhecimento do mundo, de sua origem e seu funcionamento. Este desdobramento estava muito além de minhas previsões iniciais, o que me deixou ainda mais curioso em descobrir até que ponto vocês chegariam. Foi uma surpresa intrigante perceber que, mesmo tendo desenvolvido ferramentas para explicar o universo de forma admirável, muitas pessoas humanas ainda acreditavam em explicações simplistas. Cheguei a pensar que veria em alguns anos terrestres uma mudança neste pensamento mas parece que me enganei.
É incrível como as mesmas ferramentas que levaram o homem a um grande conhecimento sobre si mesmo, desenvolvendo equipamentos, técnicas e tratamentos para suas diversas mazelas, desenvolvendo alimento em quantidade suficiente para sua população na maior parte do planeta, desenvolveram tecnologias utilizadas para deslocamento e comunicação em nível global, bem como um grande conforto e bem estar de parte considerável da população, ao mesmo tempo seja ignorada quando se trata do conhecimento sobre suas origens e evolução, e sobre os aspectos da intervenção humana no meio ambiente. Pessoas usam os frutos da ciência no cotidiano, mas rejeitam as informações sobre sua história evolutiva e o seu papel na manutenção do meio ambiente e nas mudanças globais, mesmo sendo geradas pelas mesmas ferramentas.
Por outro lado, observei com pesar o caminho que os instintos primitivos de dominação e ganância estão tomando, e minhas previsões para o futuro do planeta Terra não são animadoras para espécies como a dos humanos.
Vocês agora estão se perguntando, por que motivo eu estou interferindo e falando sobre isso agora, se nunca tive este interesse antes? Minha resposta está ligada aos motivos pelos quais eu criei o seu universo. Em linhas gerais, que vocês conseguiriam entender, seu universo nada mais é para mim do que o que vocês chamariam de experimento científico. Faz parte da busca pelas origens de minha própria espécie, e de meu próprio universo. Dentro de meu cronograma, seu universo já deveria ter sido extinguido há muito tempo, pois eu já tive as respostas que precisava. Devo dizer que entre as várias réplicas de meu experimento, o seu universo foi o que trouxe mais respostas. Embora vocês, com sua tendência inata a acreditar em seres supremos, possam pensar que o seu universo tendo sido criado por mim prova que qualquer universo necessite da criação a partir de um ser superior, o conjunto das evidências que nosso mundo e nossa ciência detém dizem o oposto. Vocês poderiam chegar às mesmas conclusões se conseguissem as bases teóricas necessárias para desenvolver os experimentos.
O fato é que não preciso mais de vocês. Então por que motivo estou entrando em contato? Por que resolvi deixá-los livres. Como afirmei antes, minhas previsões indicam uma extinção em algum tempo, ou seja, eu não precisaria interferir nisso. No entanto, existe esta pequena intervenção minha e, confesso, não consigo calcular qual será o efeito dela na existência e resistência do planeta Terra no seu universo.
Cada um de vocês está levando esta mensagem. Ninguém terá mensagens privilegiadas. Não acredite se alguém afirmar que eu contatei exclusivamente com novos mandamentos ou diretrizes. Vivam como se fosse a única vida, pois é isso que existe. Dito isso, estou muito curioso em observar o que cada um de vocês fará com tanta informação. Que direcionamentos tomarão? Que atitudes?
Que tenha início a segunda fase, não planejada inicialmente, do experimento.”
Aos poucos, aquele som familiar, aquele cheiro agradável, aquela sensação de paz e serenidade que inundava todos os sentidos de cada um dos habitantes humanos e pessoas não humanas do planeta começava a dissipar, sendo seguida pelo súbito retorno à realidade. Aparentemente, muitos minutos haviam se passado, mas como o piloto do avião pode perceber, assim como a dona de casa, o mendigo na rua, a vítima imediatamente baleada, não se passou mais do que uma fração de segundo.