Gosto muito de livros. Se eu pudesse leria muito mais. Nos tempos de escola até que lia bastante, mas durante a graduação só consegui ler um ou outro livro não didático, entre eles “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco. Vergonhoso, eu sei. Mas depois comecei a me interessar mais, principalmente por divulgação científica e mais tardiamente por fantasia e ficção científica. Só recentemente li “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, o tema desta resenha. Devo adiantar que contém algum spoiler.
O livro de Bradbury é de 1953 e teve uma renovação em 1981. Não estou certo, mas parece que a renovação incluiu apenas um posfácio e um coda. Trata-se de uma distopia, que é algo avesso a uma utopia. Utopia é o mundo perfeito, onde tudo funciona direitinho e todos são felizes. Uma distopia em geral se trata de um totalitarismo, um governo de uma minoria, onde o governo ou empresas controlam todos os aspectos da vida das pessoas. Fizemos um programa Rock com Ciência sobre este assunto e assim que tiver no ar eu coloco o link aqui. Se você lê um romance distópico ou assiste a um filme distópico e não pensa sobre o assunto, alguma coisa está errada.
Pelo subtítulo do livro no Brasil já dá pra ter uma noção do que o livro se trata – A temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Trata-se de um futuro onde as pessoas não podem ter livros em casa e não podem ler de forma alguma. Quando alguém é denunciado por ter livros, os bombeiros vão até a casa desta pessoa e colocam fogo em tudo. A vida das pessoas é resumida ao trabalho e ao prazer, necessariamente nesta mesma ordem. O prazer pode ser conseguido da forma que for necessária, até mesmo espancando outras pessoas. Entretanto, o que as pessoas mais gostam é da TV. O sonho de consumo é ter uma sala onde há uma televisão em cada parede. Os apresentadores de programa interagem com os telespectadores e o chamam pelo nome, sendo que as pessoas chamam tudo isso de família. O drama se desenvolve com um bombeiro chamado Montag que encontra uma garota na rua na volta do trabalho e ela começa a conversar com ele. Puxa assuntos que ele não costumava a pensar sobre e faz com que ele repense vários aspectos de sua vida. A partir daí ele começa a questionar e a querer saber por que razão as pessoas não podem ler. O que há de tão ruim nos livros?
Alguns aspectos e algumas passagens me marcaram bastante neste livro. Em primeiro lugar, como aconteceu o banimento dos livros. À primeira vista, qualquer um deve simplesmente dizer que o governo inibiu o acesso ao conhecimento. De acordo com Bradbury, isto aconteceu apenas depois, motivado e endossado pela completa falta de interesse das pessoas pelos livros. Com o surgimento do rádio e TV e o drástico aumento populacional, tudo acabou se resumindo e nivelando. Livros foram resumidos para serem divulgados em programas de rádio de 15 minutos (o Rock com Ciência não tem culpa disso!). Todos os títulos acabaram sendo resumidos a uma página e, posteriormente, a pequenos verbetes.
A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas.
Ou seja, as pessoas decidiram que ler não era importante e o governo viu isso como algo interessante. O que realmente importa na vida é trabalhar, pois todos precisamos, e ter prazer, seja como for. Ainda não se assustou? Pois eu sim. O que mais tenho visto são pessoas desinteressadas na leitura. Alunos que chegam na faculdade mal tendo lido resumos dos livros que caem nos vestibulares. É muito fácil encontrar resumos de obras, especialmente montados para que as pessoas saibam o mínimo possível dela para responder a algumas perguntas na prova. Mas e a leitura? Como anda a leitura destes mesmos alunos de faculdade hoje em dia? Mal. Muito mal. Eles não conseguem ler os livros texto. Muitos não conseguem sequer compreender o que a questão da prova está pedindo. Eu, particularmente, acho que tem muito a ver com a falta de leitura.
Mas há um outro detalhe interessante na obra de Bradbury. O fato de que tudo que ofendia alguma minoria era automaticamente eliminado, para que ninguém ficasse bravo e todos ficassem felizes.
Nem todos nasceram livres e iguais, como diz a Constituição, mas todos se fizeram iguais. Cada homem é a imagem de seu semelhante e, com isso, todos ficam contentes […]
– Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queime-o. Os brancos não se sentem bem em relação à Cabanda do pai Tomás. Queime-o. Alguém escreveu um livro sobre o fumo e o câncer de pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos o livro.
No “coda”, Bradbury comenta sobre fatos reais pelos quais passou, onde trechos de suas obras seriam eliminadas ou os editores pediram para reescrever isso ou aquilo para que não fosse preconceituoso ou coisas assim. Escreveu:
Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria, seja ela batista, unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do-sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho-quadrangular acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio.
Este é um outro tema a se pensar. Hoje mesmo vi no Facebook uma campanha de um grupo humanista contra uma fábrica de cosméticos que vende livro que eles consideram homofóbico (eu vi a página da revista da empresa de cosméticos e vi os livros que ela vende – são livros religiosos que não li, mas pelo que sei, não pregam violência contra homossexuais). Não estaria esta minoria querendo mexer naquilo que as pessoas podem ou não ler? Temos este direito? Pelo bem do pensamento crítico, o ideal não seria permitir e incentivar que as pessoas lessem tudo para tirar suas próprias conclusões?
É claro que isso é complicado. Estamos na era do “politicamente correto”. Pisamos em ovos para que uma minoria não se sinta mal com o que escrevemos ou falamos (exceto os ateus, destes pode-se falar em rede nacional que são estupradores e bandidos que ninguém se importa). Esta censura não estaria indo contra nossa liberdade de expressão e contra nosso direito de ter opinião? Ou será que o ser humano é tão obtuso que não consegue controlar seu impulso violento ao se deparar com a diversidade?
Há várias outras coisas interessantes no livro, como o acompanhamento de uma perseguição policial em tempo real, tal qual vemos na TV hoje em dia; um robô-cão que consegue identificar as particulas do suor de uma pessoa e perseguí-la até matá-la; a própria interatividade da TV e nosso mundo digital. Vale a pena a leitura.