A ciência nobre e a ciência ralé

É bastante complicado escrever sobre este tema pois é muito fácil ser passional e também lamentar minhas dores ao invés de fazer uma análise crítica racional sobre o tema. Aliás, discutir problemas brasileiros no fomento à Ciência e Tecnologia daria uma série de postagens que não poderiam ficar só aqui, mas já adianto que não vou me comprometer. Por isso, aí vai textão.

Vamos primeiramente aos fatos. Suzana Herculano Houzel é uma cientista brasileira graduada no Brasil e pós-graduada no exterior, com elevados índices acadêmicos, além de produzir divulgação científica através de livros e colunas de jornais e revistas. É bolsista produtividade em pesquisa nível 1D do CNPq. Vencer na ciência nacional já é difícil, sendo mulher então, merece parabéns em dobro. Sua carreira é inquestionável. Também é uma voz ativa na luta pela profissionalização do cientista (um ponto que pode-se abrir discussão, mas em outro momento). Entretanto, em relação a algumas de suas declarações, eu lamento ter que discordar. E é esse o objetivo deste texto.

Em 2012 a Dra. Suzana comentou que o CNPq não achava seu trabalho digno de financiamento, uma vez que não foi aprovado no Edital Universal do CNPq. O Edital Universal do CNPq é uma chamada pública para que doutores de quaisquer áreas submetam suas propostas de pesquisa com o objetivo de obter financiamento. Não há verba para todas as propostas, então, invariavelmente, a maioria é rejeitada. Eu sei muito bem como funciona isso pois desde que completei o doutorado tento inutilmente aprovar um projeto neste edital. Interessantemente na maioria das vezes recebo a mesma resposta que a Dra. Suzana recebeu: “sua proposta teve o seu mérito reconhecido. No entanto, na análise comparativa com as demais propostas, o seu pedido não alcançou classificação que permitisse o atendimento”.

Esta é a resposta padrão do CNPq. Significa que o projeto foi aprovado, é bom, mas há outros melhores. A Dra. Suzana atribui apenas à concorrência desleal com pesquisadores seniores, mas não acho que seja só isso. Isso explicaria bem o meu caso, que tenho um currículo bem mediano (vou entrar um pouquinho nesse detalhe mais adiante) se não houvessem outros pesquisadores em pé de igualdade que aprovassem todas as vezes. Uma outra coisa explica melhor, Dra. Suzana: quem julgou sua proposta deu nota suficiente para aprovar, mas que certamente não seria suficiente para obter a verba. Obviamente não posso dar nomes, mas já vi (sim, eu vi) pesquisadores (destes que geralmente aprovam seus projetos) aprovando projetos com notas mediocres por que não achavam que fulano (ou fulana) iriam fazer alguma coisa boa. Então, tinha a consciência limpa pois aprovou a proposta, mas sabia que teria propostas melhores e o pesquisador(a) não iria obter a verba. Também já ouvi outro dizer que não aprovava projetos dos outros, pois iria faltar verba para que aprovassem dele. Sim, ouvi.

Neste caso em específico, não adianta reclamar. Fomos pegos por desafetos, ou coisa parecida. Todos temos. Eu tenho muitos, pois costumo falar o que penso (e escrever, o que deixa tudo muito mais oficial). Acho que só consigo aprovar na FAPEMIG pois as minhas propostas não estão indo para certos lugares.

Em geral, eu também fico extremamente frustrado cada vez que o fim de ano chega, pois é quando chega o resultado do Edital Universal do CNPq. Inúmeras vezes já cheguei a pensar em desistir. Não adianta melhorar o projeto, ajustar a equipe, arredondar orçamento. A resposta é padrão e só pode ser explicada pelos motivos que expus acima, pois, como já afirmei, conheço outros que já aprovaram em momentos em que estávamos em pé de igualdade ou eu até com currículo melhor. Claro que agora não mais, pois se com apenas 50 mil a cada três anos já é difícil, imagine com zero. Não há currículo que se sustente. No entanto, há alguns anos atrás eu consegui furar o bloqueio do CNPq e aprovei uma bolsa de produtividade em pesquisa. Já fui pesquisador nível 2. Sem aprovar fomento, sem estudantes de pós-graduação e acumulando anos de cargos administrativos, infelizmente não renovei e agora nem sonho mais com isso.

Bom, nesta postagem em sua página no Facebook, a Dra. Suzana reclama em relação à quantia destinada à sua pesquisa pelo CNPq. Ela questiona como é que um pesquisador pode fazer com apenas 50 mil reais para três anos. Eu compreendo-a perfeitamente, especialmente se observarmos quantos alunos de pós-graduação ela orienta. Imagino que sua demanda por verba deva ser bem superior. Uma vez que ela aprovou sua proposta na faixa C do edital, cujo valor financiado é de até R$ 120.000,00, imagino que sua proposta tenha sofrido cortes. Vale lembrar que de acordo com o edital, os cortes devem ser justificados, mas isso a Dra. Suzana não comenta no Facebook ou blog (ou eu não vi ainda). Os cortes não são feitos pelo CNPq, nem pelo governo, mas pelos avaliadores. Aqueles mesmos da questão anterior.

Em relação às avaliações para conseguir auxílio, eu concordo que o sistema é falho, mas não vejo muitas alternativas para mudanças. Por exemplo, acho que o CNPq poderia ter um campo no formulário de submissão para que indicássemos para quem não gostaríamos que nossas propostas fossem para julgamento. Para ter uma ideia, até mesmo nos EUA os cientistas de alto nível precisam submeter proposta que vai para um relator externo. Sei disso pois já fui relator externo de uma proposta de mais de 800 mil dólares! Não sei como me encontraram. Eu conhecia o proponente de papers e posteriormente tive o prazer de conhecê-lo, mas nunca imaginei julgar um projeto assim. Ou seja, não importa seu tamanho, o sistema por pior que seja prega um mínimo de equidade.

Porém, há meios de conseguir verbas mais substanciosas, como vários pesquisadores de alto nível já obtiveram. Uma delas é através de editais de formação de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia ou de fomento a núcleos de excelência. No entanto, estes requerem a formação de grupos e não destinam verba a pesquisadores individuais. É provável que a Dra. Suzana já tenha buscado estas alternativas, então, nem entro no mérito da discussão. Isto serve apenas para aqueles que não conhecem muito bem o meio possam ter uma noção. Todos os editais, bem como os resultados, encontram-se no site do CNPq.

Há ainda um terceiro ponto. Com ele quero fechar a discussão. Mais recentemente, mais uma vez em sua página no Facebook, a Dra. Suzana completa o que já está bem delineado até aqui. Ela afirma que:

“Há um cenário muito ruim que precisa ser modificado. Nossos recursos para a pesquisa são escassos e pulverizados, porque existe a noção – da qual eu discordo – de que é melhor dar um pouquinho para um grande número de pesquisadores do que financiar de verdade os que são realmente produtivos.”

Agora preciso discordar veementemente. Para podermos discutir melhor, é preciso que concordemos em relação ao objetivo da ciência e dos cientistas. Sou purista, e acho que o objetivo da ciência é buscar (gerar) conhecimento (como já dizia o ET Bilu). E acho que o conhecimento deva ser universal. Até por isso tento, na medida do possível, fazer divulgação científica também.

Tem forma melhor de levar a ciência até as pessoas do que ampliar o acesso de todos à universidades, que no Brasil são os principais centros de geração de conhecimento? A interiorização das universidades levou doutores, em geral jovens doutores, para o interior do Brasil, para novos campi e novas universidades onde tudo está para ser construído. Oras, um doutor formado pela UFRJ, no grupo de pesquisa da Dra. Suzana Houzel pode muito bem conseguir um emprego em uma universidade federal por aí a fora, pois certamente currículo para isso ele terá. Pelo critério da Dra. Suzana, ele estaria fadado a ser apenas professor. Mero propagador de conhecimento, e não gerador de conhecimento. Ou seja, através deste critério, a Dra. Suzana acaba por jogar contra seus próprios orientados, os mesmos pelos quais ela tem lutado para que a profissão de cientista seja efetivada.

Certamente há quem queira ficar próximo de seus ex-orientadores, trabalhando para com eles no laboratório em uma posição estável. Não dá pra negar que é muito mais fácil alçar voo quando se começa em um laboratório montado, com infraestrutura completa, programa de pós-graduação em andamento, bons alunos de graduação, interação com pesquisadores estrangeiros, estágios no exterior. Sonho de consumo de qualquer um. Entretanto não há lugar assim para todos, e há os que preferem e tem o ânimo de construir algo do zero.

A questão principal é que precisamos dos que constroem do zero. Precisamos de gente que empreenda, que tenha garra e força de vontade de vencer os obstáculos acima para levar o sonho de ser cientista adiante. Há muitos jovens com potencial e que precisam de ajuda para enxergar o mundo de outra forma. E isso a ciência faz muito bem, mas precisa estar próxima. Construindo uma linha de pesquisa longe dos grandes centros damos oportunidades a estes jovens. Oportunidades que eles jamais sonhavam. Quantos gênios desperdiçaremos por termos condições mínimas para pelo menos mostrar que o mundo não é o quintal? O Brasil é grande demais para concentrarmos toda riqueza em meia dúzia de cientistas nos grandes centros. A ciência pode sim mudar a vida de mais gente do que imaginamos. É claro que eu não acho que vá sair um prêmio Nobel de um campus isolado no fim do mundo. Mas eu não duvido que ele possa ter começado sua vida científica em um destes.

Às vezes nem é pra tanto, como ganhar um prêmio. Mas é suficiente para mudar a vida. Apesar de evidência anedota, temos por aqui alguns bons exemplos de mudança de vida proporcionada pela universidade presente numa região distante de centros e com os primórdios de um laboratório de pesquisa sendo montado aos poucos, com verbas pingadas aqui e ali.

Assim, Dra. Suzana e demais grandes cientistas da elite científica brasileira que pensam da mesma forma, respeito a opinião de vocês. É um direito que vocês achem sua ciência mais importante que a dos demais e mais merecedoras de apoios financeiros que os demais. Vocês podem pensar assim. Só não esperem ser apoiados pelos cientistas de fora do mainstream, que não trabalham com pesquisas de alto impacto. Também queremos trabalhar. E também precisamos de verba para isso. Nossos alunos desde o Ensino Médio (alguns entram no laboratório como bolsistas de Iniciação Científica Júnior) até a pós-graduação precisam disso.

Podemos alcançar elite científica internacional direcionando os recursos para uma meia dúzia de cientistas que trabalham com pesquisa de alto impacto e alta citação? Certamente. Mas não faremos o que se espera de um país com desenvolvimento científico elevado: justiça. Da mesma forma que podemos ter muitos brasileiros entre os mais ricos do mundo. Ou podemos ter justiça social. É uma questão de escolha. E torço para que nossos governantes façam a escolha certa, mesmo que estejamos em crise, mesmo que os recursos estejam escassos.

Se está difícil para quem tem grupo de pesquisa consolidado, laboratório montado, programa de pós-graduação em funcionamento, imagine onde não tem. Onde os primeiros bolsistas BIC-Jr lavavam lâminas em bacias pois não tinha pia no laboratório. O Brasil é grande. As realidades são diversas. Mas a ciência é a ciência. Não vamos ensinar errado aos nossos alunos, dizendo que existe ciência em que se deve investir dinheiro e ciência de outra categoria.

3 thoughts on “A ciência nobre e a ciência ralé

  1. Iara Vidal disse:

    Muito boa a reflexão, Rubens! Reproduzo aqui os comentários que fiz no meu Twitter (nesta thread: https://twitter.com/iaravps/status/621401744690573312). Assino embaixo desta sua frase: "O Brasil é grande demais para concentrarmos toda riqueza em meia dúzia de cientistas nos grandes centros". Dar mais recursos para quem produz mais é uma ideia que parece muito boa e até lógica, e está na base de um monte de avaliações. Mas é algo perigoso e potencialmente cruel. Para fazer ciência de alto nível é preciso ter recursos, se esses recursos só chegam para quem já é top, os outros nunca terão a chance de chegar no topo. É o que a gente chama de efeito Mateus "Pois a quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade. Mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado" – Mateus 25.29). Sem falar que existem vários critérios possíveis para determinar o que é "produzir mais", como bem lembrou o Luiz Bento lá no Twiter. O professor que não publica um artigo, mas dá aulas e forma 50 alunos por ano, não produz? A pesquisadora que publica em periódico de Qualis baixo, mas tem um projeto de extensão que beneficia a comunidade, não produz? Pensar "eu produzo mais, mereço mais" é um argumento míope. Se a gente só fomentar a tal "elite", um dia nem a elite teremos mais…

  2. Luis Brudna disse:

    Teste 123 testando teste 1 2 3

  3. Rubens Pazza disse:

    Testando o plugin de comentários no blog.

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