Política científica e o estudo da biodiversidade

Seguindo a série de repostagens (a última, prometo), este texto foi ao ar no dia 03 de Junho de 2009, pois no dia 01 de junho a revista The Scientist trouxe um artigo interessante, sobre o risco de extinção de um grupo de cientistas chamados de taxonomistas.

Estes cientistas costumam estudar a biodiversidade em vários níveis, especialmente em nível morfológico, classificando os organismos vivos e identificando novas espécies. A despeito da grande importância destes profissionais para o conhecimento da biodiversidade, especialmente em um país como o Brasil, o número de cientistas que realizam trabalhos de campo, catalogação e identificação de novas espécies é pequeno perto de outras especialidades da ciência. Quais seriam os fatores que contribuem para este declínio?

Uma das áreas crescentes e que muitas vezes concorrem com os taxonomistas é a da biologia molecular. Análises de sequencias de DNA fornecem centenas ou milhares de caracteres (a morfologia às vezes não consegue uma centena de bons caracteres para análise) para que poderosos e complexos softwares e algoritmos de análise gerem árvores filogenéticas e determinem a distância genética entre diferentes espécies. Em muitos casos estes estudos determinam não só a posição de um determinado grupo na árvore da vida, mas também identificam novas espécies. Este poder de resolução, aliado ao fascínio da modernidade de trabalhar com DNA faz com que mais estudantes sejam seduzidos pelas micropipetas e termocicladores e menos pelo trabalho de campo e pelas velhas (ou novas) lupas. As promessas da biologia molecular são muito mais atraentes.

Esta atratividade não é algo apenas para os novos estudantes que estão ingressando ou escolhendo sua área de atuação. Também é um fator importante na destinação de recursos. Visando chamar a atenção, a National Science Foundation dos EUA destinou este ano 2,5 milhões de dólares para estudos taxonômicos e formação de cientistas nesta área. Mesmo alcançando 0,04% do orçamento da NSF, este valor é muito superior ao investido no Brasil na mesma área. Sequer existem editais específicos para esta área em órgãos de fomento.

Se não bastassem os atrativos, existem outros problemas que deixam a taxonomia e outros estudos de nossa biodiversidade com problemas cada vez maiores. Revistas científicas internacionais com maior fator de impacto costumam rejeitar artigos sobre nossa biodiversidade, muitas vezes por que preferem artigos com abrangência mais ampla, ou seja, que vá ser lido (e citado, obviamente) por mais pesquisadores. Ou seja, os “gringos” se interessam pela nossa fauna e flora quando eles próprios vêm fazer as coletas. Se nós pesquisamos nossa biodiversidade e estamos apresentando os resultados, não interessa. Isso significa que as pesquisas de biodiversidade são de interesse maior para nosso próprio público e por isso muitas vezes são publicadas em revistas nacionais, seja em língua estrangeira, seja em português. Algumas revistas brasileiras têm tradição internacional neste tipo de publicação, como a Zoologia (antiga Revista Brasileira de Zoologia), Papéis Avulsos de Zoologia, Revista Brasileira de Botânica, entre outras.

Seria então, esperado, que os órgãos de fomento nacionais dessem maior importância a estas publicações, não é mesmo? Há alguns anos a CAPES apresenta uma metodologia de avaliação das revistas científicas em um sistema chamado QUALIS. Trata-se de um sistema que leva em conta o fator de impacto da revista, medido a partir das revistas indexadas no Journal Citation Report (JCR), um indexador internacional pago. Através deste sistema, a maior parte das revistas nacionais teve, na última avaliação do QUALIS, índices muito baixos para sua grande importância e contribuição efetiva para a ciência nacional. Face aos problemas do QUALIS, entidades como a Sociedade Brasileira de Zoologia, entre outras, assinaram um documento que solicita uma revisão nestas regras, para não afundar de vez a ciência básica nacional. Este documento pode ser lido na íntegra neste endereço. A continuidade de um sistema classificatório como este inviabiliza a continuidade de revistas tradicionais em diversas áreas do conhecimento e podem comprometer a publicação nacional.

Mas até aí, tudo bem. A CAPES é um órgão que, embora tenha muito auxílio de pesquisadores, não é composto por estes. Mas e quanto aos Comitês de Área do CNPq? Há poucos dias os comitês apresentaram as novas normas para a concessão das bolsas de produtividade em pesquisa, fornecidas a pesquisadores que preenchem os requisitos e que, em geral, tratam-se de profissionais com bom índices de publicações por ano e estão envolvidos na formação de recursos humanos orientando em programas de pós-graduação. O objetivo da reformulação nestas regras é ter critérios mais claros e justos para a designação destas bolsas. Cada comitê pode adicionar critérios específicos para sua área, que reflitam as características individuais de cada área. Por exemplo, na área de Zoologia, para ter a primeira bolsa, que inicia em nível 2, o pesquisador precisa nos últimos cinco anos ter publicado pelo menos 5 (cinco) trabalhos em periódicos científicos qualificados nos últimos e ter concluído a orientação de pelo menos 1 (um) Mestre, além de estar envolvido em orientação de mestrandos ou doutorandos. Por sua vez, o comitê de Genética, além de já ter concluído a orientação de um mestre e estar orientando mestrandos ou doutorandos, exige que o pesquisador tenha publicado pelo menos 5 (cinco) trabalhos em periódicos científicos de preferência como autor principal ou correspondente (primeiro ou último autor) e com fator de impacto igual ou superior a 1,63. Esta última exigência é engraçada, quando observamos qual é o fator de impacto da revista brasileira da área – Genetics and Molecular Biology: 0,485. Ou seja, se eu quiser ser bolsista produtividade em pesquisa da área de Genética, não posso publicar na revista nacional! Isso significa que os próprios pesquisadores da área, pois os comitês são formados por pesquisadores, estão boicotando a revista nacional, que publica artigos científicos desde 1978. Como se não bastasse o sistema QUALIS colocar a revista em uma péssima classificação, os pesquisadores também estão desestimulando a publicação de qualidade na revista. Ora, se eu tenho um bom artigo que pode ser publicado em uma revista com fator de impacto maior que 1,6, porque vou publicar na Genetics and Molecular Biology, o que poderia contribuir para aumentar seu fator de impacto, se a cúpula da área no CNPq não dá valor para esta publicação?

Enfim, de que adianta alardear tanto que subimos para 13º no ranking de publicações, aumentando (exageradamente) mais de 50% nas publicações (para ter mais detalhes sobre estes números e seu exato significado, ver outras discussões no Jornal da Ciência E-mail e noObservatório da Imprensa), quando não se dá valor para as revistas nacionais, que engrossaram o caldo deste impressionante aumento no número de publicações indexadas internacionalmente?

Enfim, o conjunto da obra faz com que tenhamos pouco incentivo tanto para pesquisadores de áreas básicas como para a formação de recursos humanos nestas áreas. Quando vemos, por exemplo, alunos de pós-graduação vendendo camisetas para custear seu trabalho de campo, precisamos refletir quais os caminhos que devem ser tomados. Algumas estimativas sugerem, com propriedade, que o aumento do número de espécies novas descritas no Brasil seguem o aumento do número de grupos de pesquisa na área. Por si, esta informação poderia significar que a situação está boa, mas isso só esconde o problema da falta de verba para a pesquisa básica e a situação complicada de programas de pós-graduação em consolidação.

O estudo da biodiversidade em seus vários níveis é o primeiro passo para termos programas de manejo visando sua conservação e para estabelecer o tão comentado desenvolvimento sustentável, além de ser o melhor mecanismo para a bioprospecção de produtos naturais que poderão ser utilizados na alimentação e saúde humana. Para isso é necessário apoio à pesquisa de base. É necessário o fortalecimento das revistas científicas nacionais e dos grupos de pesquisa emergentes e em consolidação. É preciso fazer com que a sociedade, os políticos e os pesquisadores que compõem os comitês assessores dos órgãos governamentais percebam que o estudo da biodiversidade pode ser tão importante quanto o estudo das células tronco, da nanotecnologia ou dos biocombustíveis em um país megadiverso como o nosso.

 

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