Dias claros e noites escuras

Ainda lembro como se fosse hoje. Eu era apenas um menino. Não sei, uns oito ou nove anos. Tinha recém aprendido a mexer com a lâmina para esculpir meus animais de madeira. Era perigoso, meu pai dizia.

“Use o dedal de couro e a lâmina curta com aquele cabo que fiz para você, que tem o tamanho da sua mão. Se estiver bem firme o risco de escorregar e se cortar é menor. Isso… continue à favor do veio da madeira”.

Passava horas fazendo isso. Especialmente naqueles momentos antes do jantar, à beira da fogueira. É claro que naquela época todos os animais que eu fazia eram basicamente iguais. Uma cabeça esquisita, com duas pontas protuberantes parecendo orelhas, um corpo arredondado e quatro patas. Às vezes eu esquecia do rabo e a onça já se tornava um veado jovem. Talvez eu tenha algum destes guardado em algum lugar, mas depois de tudo que passamos já não sei mais.

Todos os anos subíamos a montanha e acampávamos próximo à nascente do riacho para fazer a busca de cogumelos. Uma semana em família, dormindo em barracas e cozinhando na fogueira. A temporada havia começado há uma semana e sempre nos preparávamos para partir logo no início, para colher os mais frescos, dizia meu pai.

Era uma noite fria no início da primavera, mais ou menos como essa de hoje. O céu estava limpo e uma brisa suave balançava levemente as folhas das árvores. A lua crescente permitia observar o brilho de cada estrela, como se pequenas chamas de vela estivessem acesas na escuridão distante. O crepitar das chamas da fogueira queimando galhos secos abafava ligeiramente os sons de sapos, insetos, corujas e outros animais noturnos do bosque úmido.

Sobre a fogueira, pendurada em um suporte, um pequeno caldeirão onde pedaços de carne de lebre cozida com batatas e cenouras fervia. Meu pai ia mexendo de quando em quando enquanto uma massa de pão assava junto à brasa da fogueira para acompanhar o ensopado. Aquele havia sido um bom dia de busca por cogumelos e o perfume do ensopado ficou ainda mais apetitoso quando ele acrescentou uma bela quantidade deles.

Ele nem sempre era o responsável pelo jantar, mas naquele dia, especialmente, tropecei em uma raiz enquanto corria pela bosque e rolei em um pedregulho por uns 20 metros morro abaixo. Criança ou se machuca feio ou não acontece nada nesses casos. Saí ileso, mas com um buraco enorme na minha blusa. Minha mãe estava costurando enquanto meu pai cozinhava.

Eu já estava com fome, então até esculpir meus animais estava me entediando. Deitei ao lado da fogueira e comecei a olhar a lua, as estrelas. O ensopado ainda iria demorar.

“Por que é escuro de noite, onde está o Sol?” perguntei.

Lembro que essa não era a primeira vez que eu perguntava. Crianças sempre perguntam a mesma coisa várias vezes, até que a resposta seja satisfatória. Minha mãe me disse mais uma vez, que a Terra fazia um movimento de girar em torno do seu eixo, rodopiando enquanto girava ao redor do Sol, e que quando a nossa parte do planeta estava de frente para o Sol era dia, e quando girava em direção ao outro lado, escurecia. Dessa vez, eu lembro como se fosse hoje, ela pegou uma laranja, fez uma marca de um lado e a rodou em frente à fogueira.

“Está vendo? – Disse ela. Imagine que somos essa marca. Quando estamos de frente para o Sol, é dia, no momento em que giramos para o outro lado, fica escuro, é noite”.

“Sim, você já me disse isso, eu já entendi. Mas quando começou? Quando foi a primeira noite? Isso não assustou as pessoas?” – eu perguntava sem parar

“Quando os seres humanos se deram conta de sua existência no planeta, as coisas já eram assim há milhões de anos. Sempre foram, desde que o planeta foi formado”.

“Essa é uma explicação” – resmungou meu avô do outro lado da fogueira. “Mas os povos antigos sabiam exatamente como tudo começou” – continuou ele.

“Xi, lá vem o vovô com suas histórias tribais” – comentou meu pai – “Vai dizer que antigamente não existia dia e noite”?

“Ora, é claro que sempre existiu dia e noite, só não da forma como conhecemos hoje” – disse meu avô. “E você conhece bem a história pois eu já contei pra você. Vai dizer que já se esqueceu? Eu esperava que você contasse para o meu neto”.

“Eu não esqueci, claro que não. Só estou te enchendo a paciência para ver se a história é consistente. Nunca contei pra ele porque queria que você pudesse fazer isso e porque ele nunca perguntou quando estávamos sozinhos. A honra é sua, pode contar. Pode contar pra ele que a Terra é plana”.

Meu avô já não lembrava direito de datas, de quando ouviu a história pela primeira vez, e nem de quantas vezes já havia contado. Mas ele parecia ter ficado muito animado com a possibilidade de contá-la outra vez. Parecia até ter esquecido das dores nas costas e no tornozelo, que praticamente o impediam de fazer grandes caminhadas, como as que fazíamos para buscar cogumelos.

“É óbvio que a Terra não é plana, como sabemos muito bem” disse meu avô enquanto limpava seus óculos e sorria com certo sarcasmo para meu pai. “Pelo menos, não hoje, não mais”.

Lembro que isso fez uma confusão imensa em minha cabeça. Como assim, não hoje? Como assim, não mais?

Os antepassados de meu avô pertenceram a uma tribo remanescente da grande destruição, que ficou isolada durante muitos anos até ser encontrada acidentalmente e reintegrada ao que conhecemos como civilização atual. Poucos sabiam a arte de ler e escrever em suas origens, e o aprendizado foi se perdendo. As histórias passaram a ser contadas apenas oralmente, de pai pra filho. Não sabemos ao certo quando elas começaram e onde tiveram origem. A arqueologia, uma antiga ciência de desvendar o passado não era mais que histórias nos livros, uma vez que a ciência foi perdida e as necessidades humanas se tornaram outras. Só nos resta ouvir as histórias.

Contam os membros dessa tribo que antes de existir dias e noites de acordo com a rotação da Terra e nossa posição em relação ao Sol, a Terra era plana, como um disco, e todos os seres vivos viviam em um dos lados, na imensa planície da superfície. O deus Vur’Tsa era responsável por brilhar e esmaecer criando períodos de penumbra e claridade enquanto reinava em uma montanha no centro do disco terrestre. Ele já fazia isso há milhares de anos, desde o início dos tempos do planeta, e estava cansado. Humanos dedicados eram escolhidos para serem seus servos, produzindo cerveja e levando para alimentá-lo quando estava brilhando. Seus momentos de penumbra e claridade marcavam os momentos de trabalho e descanso dos povos, de modo que todos tinham o costume de dormir e acordar no mesmo horário. Os dias não eram tão claros como hoje, nem as noites tão escuras.

Certo dia um dos servos errou a medida do lúpulo deixando a cerveja extremamente amarga. Para não descartar o líquido precioso, adicionou mais malte e grandes quantidades de mel, e colocou para fermentar. O resultado foi uma cerveja adocicada, mas com muito álcool. Vur’Tsa no início achou estranha, mas aquele adocicado o fazia beber mais e mais. Muito mais do que deveria. E tal qual os humanos (que afinal, são espelhos dos deuses) que quando bebem demais fazem bobagens, esse deus assim o fez. Resolveu que não iria mais definir a penumbra e claridade, um trabalho que era um castigo de seu pai por ter ele criado acidentalmente a Terra e seus habitantes (mas essa era uma outra história, dizia meu avô). E então, no meio de seu devaneio alcoólico ele teve a ideia de criar um astro tão brilhante que poderia substituí-lo nos momentos de claridade, e ele poderia ficar livre para conhecer outros mundos enquanto isso. Nisso ele criou o Sol. Criou o Sol e desapareceu.

Ao criar o Sol, Vur’Tsa despertou a grande besta Ka’al que estava adormecida em uma caverna, bem distante das aldeias humanas que estavam espalhadas pelo disco terrestre. Ninguém percebeu o despertar da besta, nem mesmo o Vur’Tsa, que não tinha noção de sua existência. Eu sempre me perguntei de onde essa besta tinha saído, mas meu avô sempre dizia que essa era outra história, uma que ele jamais pôde me contar. Ninguém percebeu nada no início, pois a grande besta não podia sair da caverna com a luz do Sol. A luz a incomodava. E quanto mais tempo a luz do Sol brilhava, mais os olhos da besta eram sensibilizados e ela queria fugir. Isso fez com que ela cavasse mais e mais, e mais e mais. Até atravessar o disco terrestre saindo do lado oposto. O lado oposto era o nada, e a besta agora desperta estava com fome.

Enquanto isso os humanos da Terra trabalhavam pois, era dia. Mas esse dia não acabava e eles já estavam cansados. E o dia não acabava, e aquela luz já era insuportável. Todos suplicaram, chamando Vur’Tsa. Ele ouviu um murmúrio distante e percebeu que era um chamado. Retornou à Terra e viu que havia esquecido o Sol brilhando, deixando todos acordados e trabalhando durante tempo demais. Estavam exaustos, sem saber o que fazer. Rapidamente o Vur’Tsa empurrou o Sol para o lado oposto do disco terrestre deixando a superfície extremamente na penumbra, mas que aos olhos dos humanos representava uma escuridão total depois da grande exposição à luz solar por um grande tempo. O desconforto da escuridão fez com que eles fechassem os olhos aguardando a aclimatação. Um desconforto que só não foi pior que o som que ouviram a seguir. Incomodada pela luz do Sol que brilhava do lado oposto, a grande besta adentrou gritando em sua caverna e saiu do outro lado, no lado da superfície. Imediatamente sentiu um cheiro, cheiro de humanos, cheiro de alimento.

Ao ver os humanos indefesos diante da besta, o Vur’Tsa pulou e a agarrou pela cauda, jogando-a de encontro à montanha, derrubando boa parte das pedras que lá estavam há milênios e as espalhando pela Terra formando inúmeras montanhas menores. A besta então precipitou-se em direção ao deus e ao mesmo tempo em que chicoteava-o nas costas com sua longa cauda, mordia o braço de Vur’Tsa com seus dentes afiados como navalhas. Vur’Tsa esgueirou-se para se defender da boca mas com o golpe recebido nas costas não conseguiu afastar completamente os dentes da besta que ainda arranharam o seu braço. Enquanto Vur’Tsa caía com um grave gemido de dor, a besta jogou-se em cima dele, segurando os seus braços e mordendo seu ombro direito. Um puxão forte arrancou o braço de Vur’Tsa que ao mesmo tempo conseguiu empurrar a besta com os pés fazendo com que ela se afastasse. Muito sangue escorreu do braço arrancado de Vur’Tsa, formando grandes oceanos que se espalharam pela superfície do planeta.

O cheiro dos humanos era um deleite para Ka’al. Quando tentou pular em direção à aldeia mais próxima, Vur’Tsa puxou-a pela cauda novamente e no reflexo de se defender ela acertou o rosto de Vur’Tsa com as suas garras fazendo uma profunda marca e arrancando um dos seus olhos. Ao cair na superfície da Terra, o olho de Vur’Tsa se quebrou em milhões de pedaços, tornando-se veios de ouro e pedras preciosas. Ka’al novamente segurou Vur’Tsa com as garras, e no momento exato em que ia engolir a cabeça dele completamente, um brilho a atrapalhou. Naquela aldeia próxima, um humano abriu os olhos. E outro, depois outro. Os olhos abertos dos humanos refletiam um tipo especial de luz que incomodava a besta tanto quanto o próprio Sol. Percebendo isso, Vur’Tsa tentou brilhar, mas estava muito fraco e não conseguiu. Por fim, com todos os humanos de olhos abertos a besta fugiu e gritando retornou para o fundo da caverna, isolando-se da luz do Sol que estava abaixo e dos olhos abertos dos humanos, acima.

Vur’Tsa se recuperou em pouco tempo, afinal era um deus. Logo voltou a brilhar e proteger os humanos da besta. Mas no fundo sabia que eles não mais precisavam dele, pois enquanto estivessem de olhos abertos a besta jamais os ameaçaria. O problema era manter períodos de claridade e escuridão para que os humanos pudessem trabalhar e descansar. Durante algum tempo tentou deixar que alguns humanos ficassem acordados na penumbra para fazer vigília, mas como não conseguiam adormecer durante a fase brilhante enlouqueceram em poucos dias.

E então ele teve uma ideia. Espremeu a Terra e a transformou em uma esfera, forçando-a a girar sobre si mesma. Assim, enquanto parte das aldeias estava dormindo, parte estava à luz do Sol, de modo que nunca estariam todos os humanos com os olhos fechados ao mesmo tempo. Desde então temos os dias e as noites, e enquanto os humanos mantiverem seus olhos abertos, a besta jamais retornará, e nunca mais precisaremos de Vur’Tsa, que se tornou livre.

Conta meu avô que algumas tribos não acreditaram que estavam livres da besta, e até hoje pensam que a Terra é plana. Ainda aguardam a chegada da besta e pedem proteção a Vur’Tsa como se ignorassem o poder que seus olhos abertos manifestam. Mas essa também é uma outra história.

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