Nas aulas de Introdução às Ciências Biológicas (disciplina que está mudando de nome, mas isso não vem ao caso) eu costumo dizer que ciência pode ser feita em casa, sem grandes equipamentos ou reagentes caros, desde que se use o método científico. Isso é uma quase verdade. O principal porém está no fato de como tornar os resultados de seus experimentos científicos acessível a outras pessoas, um passo importante no desenvolvimento de qualquer tipo de ciência.
A maneira mais difundida é através da publicação do experimento em uma revista especializada, um periódico científico. Na realidade, este passo é tão crítico que muitas vezes se troca o fim pelo meio, ou seja, se julga algo científico por ser publicado em uma revista científica. E muitas vezes se classifica a qualidade do experimento científico de acordo com a revista em que ele foi publicado. Se levarmos em consideração esta definição, você só fará ciência se conseguir publicar seus resultados em periódico científico.
Eu tenho inúmeras questões para discutir com este mote. Não cabe em um texto. Estou protelando esta discussão há muito tempo e neste momento só vou abordar um pequeno, minúsculo, pedaço do problema.
Há alguns anos um jornalista contou como enganou milhões de pessoas com uma pesquisa fajuta sobre chocolate amargo ajudar a diminuir peso. Sim, a pesquisa foi feita e parecia tudo certo. Um resumo do trabalho todo pode ser lido aqui ou no original, com o autor do “experimento”. O problema básico estava na montagem do experimento, especificamente no número amostral. O número amostral é crucial nas análises estatísticas, que no final das contas explicitam os resultados para os pesquisadores. Um baixo número amostral faz com que pequenos efeitos se tornem estatisticamente significativos em experimentos de correlação.
Enganar pessoas comuns é fácil, pois elas dificilmente vão até o artigo original e percebem que o número amostral foi baixo, portanto não dá pra confiar nos dados, muito menos nas explicações. Porém, isso não poderia passar despercebido por outros cientistas. Uma etapa da publicação é a análise do artigo por cientistas da mesma área, que darão um parecer sobre a qualidade científica do experimento. Na teoria, eles devem avaliar os objetivos propostos pelos autores, se o mesmo foi alcançado, se a metodologia está condizente para que se alcance os objetivos, se os resultados são consistentes e se a explicação para os resultados está adequada. Se tudo isso está de acordo com o método científico e está coerente, o relator deve recomendar que o trabalho seja publicado.
Neste momento não vou entrar na questão de haver revistas que não fazem este processo e publicam artigos com dados errados, falsos ou incoerentes, ou ainda mal escritos, por estarem lucrando com a publicação dos artigos. Uma outra coisa me chamou a atenção para começar a falar sobre o tema “publicações”. O fato de eles terem enviado o artigo a várias revistas ao mesmo tempo.
“Com os resultados em mãos, Bohannon submeteu a pesquisa para publicação em revistas científicas e dentro de 24 horas diversas publicações mostraram interesse em divulgá-la”
Queria entender como isso funciona. Na nossa área, tenho que assinar um termo de que o trabalho submetido para publicação não foi e nem será submetido à outra revista enquanto o processo de avaliação não terminar. Como assim na área de saúde é possível enviar para várias revistas, como se estivesse rifando o artigo?
É possível que para provar seu ponto o jornalista tenha “esquecido” deste detalhe*. Enfim, de qualquer forma, o artigo foi publicado na revista International Archives of Medicin, que certamente não tomou os devidos cuidados para a revisão por pares, embora afirme que faça. Interessante que a revista não esteja na lista dos periódicos predatórios (assunto para outras postagens, quem sabe um dia).
Podemos concluir que sim, ciência pode ser feita em casa, mas para ser efetivamente considerada ciência, precisa ser publicada em periódico. O problema é que há periódicos que não se preocupam com o método científico ou com a validade dos dados. Isso gera uma necessidade de se separar o que é bom do que é ruim, mas que ao meu ver acaba muitas vezes atrapalhando nosso conceito do que é ciência, mas isso é assunto para outro texto.
Em tempo, uma busca pelo título do artigo não ofereceu resultado no site da revista. Isso significa que ele foi simplesmente removido, sem nenhum comentário sobre o assunto. O ideal seria remover o artigo e ligá-lo a um editorial explicando os motivos da retirada. Mas não podemos esperar isso.
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* Na realidade, no texto original ele afirma que fez isso para poupar tempo, o que faz sentido quando seu objetivo não é fazer ciência de verdade:
“Since time was tight, I simultaneously submitted our paper—“Chocolate with high cocoa content as a weight-loss accelerator”—to 20 journals”
“Como assim na área de saúde é possível enviar para várias revistas, como se estivesse rifando o artigo?”
Um colega me contou que um colega de outra universidade fazia isso (talvez ainda faça) na área de Computação.
Mas as revistas exigem a afirmação de que não está fazendo isso, não? Ou elas deixam em aberto?