Este texto foi originalmente publicado no Jornal da Ciência E-Mail de 10/05/2005 (o repositório original aparentemente não existe mais ou teve links quebrados), em resposta a uma onda de artigos sobre o Design Inteligente que circulavam pelo jornal na época. É o primeiro texto que escrevi sobre os erros no jornalismo científico nacional.
Os avanços tecnológicos têm proporcionado oportunidades ímpares para que a população obtenha informação.Desde a invenção da imprensa, rádio, televisão, chegando até os modernos meios digitais via Internet e informação pelo celular, certas coisas permanecem: pessoas procurando informação e pessoas repassando informação.
Não importa por qual meio. De modo geral, as pessoas confiam muito nas informações que obtêm através dos profissionais da comunicação. Principalmente em se tratando de temas pouco compreendidos, como a ciência em geral.
Por isso, é imperativo que as empresas jornalísticas assumam a responsabilidade de ter sempre pessoal bem preparado para garantir informação de qualidade aos espectadores. Infelizmente isso não é o que sempre acontece.
Recentemente, foi publicada a seqüência completa de nucleotídeos do cromossomo X humano. Assustadoramente, um dos principais jornais do Brasil afirma, em rede nacional, que ‘os cientistas decifraram o código genético do cromossomo X’. Código genético é a maneira pela qual a informação contida no DNA na forma de seqüências de nucleotídeos é traduzida para proteínas como seqüências de aminoácidos. Parece uma coisa tola, mas faz muita diferença. O código genético é praticamente universal, sendo o mesmo para quase todas as espécies da Terra. Seqüências de nucleotídeos no DNA variam.
Na edição de 4 de Maio de 2005 do ‘JC e-mail’, na matéria extraída do jornal ‘O Estado de SP’ intitulada ‘Maiores diferenças entre nós e os chimpanzés não estão no cérebro’, o autor comenta: ‘Os pesquisadores compararam 13.731 genes em busca de indícios de uma ‘seleção positiva’, ou seja, onde ocorreu a mutação em resposta a uma pressão ambiental para facilitar a sobrevivência da espécie’. Uma frase como esta pode indicar às pessoas que mutações acontecem para solucionar problemas do meio ambiente, numa visão lamarkista, sem nenhum fundamento científico. O que houve foi que mutações que possibilitaram mais adequada adaptação ao ambiente foram selecionadas positivamente, ou seja, aumentaram no fundo gênico da população. De fato, embora tenha um tratamento estatístico ainda debatido, os dados dos pesquisadores sugerem que genes relacionados com supressão de tumores, apoptose e fatores antivirais, tiveram mutações positivas, que foram selecionadas favoravelmente durante a evolução dos humanos.
Tais distorções cometidas pelos meios de comunicação em massa fornecem combustível para que alguns movimentos pseudocientíficos se fortaleçam. Uma das grandes vantagens das pseudociências em geral é seu grande apelo público. É muito fácil fazer as massas acreditarem que uma história é verdadeira. Basta um pouco de aplicação imediata, uma pitada de erudição, uma pequena dose de apelo de autoridade e alguns litros de hipocrisia. Tudo isto, sendo preparado por uma figura de confiança na sociedade, é a fórmula perfeita para vender curas milagrosas, mitos por verdades e muito mais.
É desta forma que está crescendo no Brasil o movimento do ‘Design Inteligente’ (DI), autoproclamada alternativa à teoria evolutiva. Travestida de roupagem ‘científica’, o DI repousa no insistente argumento de que a complexidade vista na natureza não pode ser obra do acaso, mas de um arquiteto inteligente.
Este movimento, que parece tomar força hoje, no Brasil, está crescendo em todo o mundo, sendo notícia de capa da revista ‘Nature’ recentemente. Conforme o editor da revista alerta, é importante que este movimento não seja ignorado, e eu insisto, que seja esclarecido. O Dr. Julio Pieczarka já escreveu neste espaço sobre o assunto, e seu texto merece ser destacado (http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=25540).
O DI não tem uma base científica sólida. Sequer tem uma base científica. Suas idéias baseiam-se num viés interpretativo de algumas descobertas isoladas da ciência. O único artigo publicado em periódico científico indexado não merece mais destaques que o artigo do falecido Dr. Jacques Benveniste na revista Nature, sobre a memória da água, que jamais foi corroborada. O DI não pode ser testado, não pode ser falseado, não pode ser corroborado. Neste sentido, está longe de ser ciência, nos termos modernos da filosofia da ciência de Karl Popper. Partindo do princípio de que existe complexidade na natureza, e que, segundo eles, a teoria evolutiva não pode explicá-la, conseguem a brilhante conclusão de que tal complexidade foi criada por um arquiteto inteligente.
Embora o termo ‘criada’ não seja bem recebido pelos adeptos do DI, suas explicações não sugerem algo diferente. Assim, longe de ser uma teoria científica alternativa à teoria evolutiva (esta sim, uma teoria científica, podendo ter suas teses corroboradas ou falseadas por estudos independentes), o DI pode ser considerado como argumento das lacunas, encaixando arquitetura inteligente em qualquer fato ainda não esclarecido pela ciência evolutiva.
Além disso, há uma insistência intrigante no combate de uma evolução que não existe, um espantalho, criado para tornar evidentes aos olhos leigos o que chamam ‘lacunas’ da evolução, que são convenientemente tapadas pelo arquiteto inteligente. A noção de que a evolução apenas procede ao acaso, e que o acaso não pode produzir a complexidade vista na natureza, não apenas é um espantalho como também está equivocada. Modelos computadorizados permitem demonstrar que complexidade pode ser gerada ao acaso. É interessante como o algoritmo evolutivo é convenientemente esquecido pelos adeptos do DI.
Mais fácil que chutar cavalo morto é bater em um cavalo inexistente. Como toda pseudociência, o DI utiliza meios sórdidos de manipulação de dados e joga com o analfabetismo científico da população.
As idéias revolucionárias de Darwin estão prestes a comemorar 150 anos. De lá para cá, muito foi descoberto, idéias foram corroboradas por estudos mais abrangentes e sofisticados; outras, após período de ridicularização estão sendo retomadas; passamos por uma síntese quando os mecanismos genéticos de herança foram sendo esclarecidos e rumamos para uma nova síntese, com a melhor compreensão da biologia do desenvolvimento. Enquanto isso, as idéias mitológicas sobre a história natural da Terra permanecem muito semelhantes. Alguém ou algo surgido do nada é responsável por criar tudo (interessantemente, os adeptos destes mitos criticam os cientistas por dizerem, segundo eles, que tudo veio do nada… Outra falácia do espantalho, além de um belo tiro no pé) da maneira como vemos hoje.
O DI não passa de uma renovação do velho criacionismo, com um jeito aparentemente secular para se tornar atraente aos olhos dos mais céticos. Por mais que insistam em dizer que não são criacionistas, não conseguem bons argumentos sobre o ‘arquiteto inteligente’. A diferença entre os mitos de criação antigos e este novo é o diploma conferido ao criador. Desta forma, o DI não passa de um neocriacionismo, completamente recheado de elementos míticos não comprováveis, mas mascarado de ciência.
Como outras formas de pseudociência, o DI deve ser combatido. Como o saudoso biólogo e astrônomo Carl Sagan costumava dizer, má ciência se combate com boa ciência. E boa ciência não falta nos periódicos científicos nacionais e internacionais, repletos de exemplos e evidências de evolução.
O que está faltando é levar estas informações ao público, através de uma divulgação científica bem conduzida, sem vulgarização ou super-simplificações, e o mais importante, sem erros interpretativos. Desta forma, é importante que a comunidade científica esteja atenta para corrigir prontamente erros como estes citados.
Para a população em geral é difícil discernir o que é certo ou errado em ciência, e é desta maneira que os pseudocientistas aproveitam para vender suas teorias míticas. Deslizes, como o observado no referido artigo, podem comprometer todo um conjunto de ações construtivas que buscam informar corretamente a população, trabalho exemplarmente executado por jornalistas sérios e divulgadores da ciência preocupados com o compromisso social de ser um educador.