O Brasil é um país megadiverso, com espécies novas sendo descobertas a cada dia. Esta grande biodiversidade de fauna e flora o colocou no foco de ações internacionais em defesa da biodiversidade, popularizando a frase “conhecer para preservar (ou conservar)”, no sentido de que precisamos conhecer nossa biodiversidade para preservá-la (ou conservá-la). O que seria isso? Conhecer a biodiversidade seria contar e catalogar todas as espécies viventes atualmente, ou seria algo mais amplo? Respondendo à esta questão podemos melhor trabalhar em planos de manejo que efetivamente levem à conservação da nossa biodiversidade.
Com os estudos de Darwin a biologia passou a ter uma hipótese a ser testada, e a simples catalogação das espécies deixou de ser o foco principal da história natural. Por isso, quando falamos em conhecer a biodiversidade estamos falando sobre a catalogação das espécies e muito mais. Queremos saber como cada espécie se tornou o que é, e tudo que estiver relacionado com sua história evolutiva. Simplesmente conhecer o número de espécies de um determinado ambiente não é suficiente para responder às questões que o crescimento e o desenvolvimento populacional nos impõem. Neste sentido, os estudos evolutivos podem contribuir com propostas de manejo e conservação de espécies, mas como?
O primeiro problema é determinar o que é uma espécie. Existem espécies que se diferenciam com uma simples passada de olho – como quando comparamos um leão com uma ovelha, por exemplo. No entanto, nem sempre as coisas são assim tão simples. Há espécies que podem ser diferenciadas pelo seu comportamento; há casos em que apenas estudos genéticos permitem diferenciar espécies pois morfologicamente são bastante semelhantes ou até indistinguíveis. Esta identificação correta, por si só, já é de extrema importância. Imagine que você precisa trabalhar em um projeto de reintrodução de fauna em uma área degradada onde a população de uma determinada espécie está bastante reduzida. A simples análise de morfologia poderia fazê-lo introduzir uma espécie idêntica morfologicamente, mas que não teve a mesma história evolutiva e possuiu um isolamento que impede o reestabelecimento saudável da espécie desejada.
As grandes bacias hidrográficas, como as do rio Paraná e rio São Francisco, por exemplo, estão isoladas há milhões de anos, mesmo estando próximas em várias partes do Brasil. Apesar de haver questões mais complexas, em geral os peixes destas bacias hidrográficas estão separadas por este mesmo período, acumulando variações independentes em cada ambiente. Mesmo assim, as características morfológicas semelhantes em espécies de ambas as bacias podem fazer parecer se tratar da mesma espécie. Os peixes do gênero Astyanax (lambaris ou piabas) tem sido estudados há muitos anos justamente pelo conflito entre as características morfológicas e genéticas que possuem. Astyanax fasciatus é conhecido como lambari do rabo vermelho por apresentar a nadadeira caudal bastante avermelhada. Esta espécie é encontrada tanto nos rios da bacia do rio Paraná quanto nos da bacia do rio São Francisco. Estudos genéticos tem apontado que a história evolutiva de diferentes populações dos rios Paraná e São Francisco apesar de caminharem em um mesmo caminho morfológico, trilharam-no de modo independente, paralelo. Desta forma, acumularam variações genéticas que as tornaram espécies distintas, embora a taxonomia ainda não tenha validado esta posição. O conhecimento dos aspectos evolutivos neste exemplo, permitem uma melhor conduta nos planos de manejo, pois impede que se utilize peixes de uma bacia hidrográfica para recolonizar outra, mesmo quando os próprios taxonomistas consideram algo como sendo da mesma espécie.
Às vezes o problema é ainda mais sutil, e precisamos avaliar a variabilidade genética que existe dentro de cada população analisada. Este tipo de conhecimento permite avaliar a saúde genética de uma espécie. Suponha que na área que você está estudando o tamanho populacional de uma determinada espécie tenha declinado recentemente, devido a muitos casos de baixa natalidade. Estudos genéticos podem demonstrar que a população está sofrendo o que é chamado de depressão por endogamia, um problema que acontece em pequenas populações que passam a ter cruzamentos endogâmicos (entre parentes) mais frequentes. Isto faz com que genes deletérios (que causam problemas) tenham mais possibilidade de ficar em homozigose. Os estudos evolutivos nos dizem que a variabilidade genética pode ser aumentada pela migração e podemos usar este conhecimento para planejar o manejo adequado, introduzindo novos exemplares levando em consideração o que vimos anteriormente, sobre a questão de se tratar da mesma espécie. Entretanto, há casos em que o acúmulo de variações decorrentes de um isolamento reprodutivo não é suficiente para considerarmos espécies diferentes, mas pode ser grande demais para o sucesso de repovoamentos.
Uma outra ferramenta das análises evolutivas que pode ser útil em conservação da biodiversidade é a filogeografia. A filogeografia recupera os caminhos evolutivos de diferentes populações de uma mesma espécie, e permite identificar casos de fragmentação de habitats e proximidade genética entre populações, incrementando as informações para os planos de manejo e conservação.
Por isso, quando falamos que é necessário conhecer para conservar, queremos falar muito mais do que simplesmente catalogar as espécies existentes. O conhecimento da história evolutiva e das características mais detalhadas de cada população é que vão permitir realizar planos de manejo e conservação com maior probabilidade de sucesso.
——————-
Escrevi este texto para o livro de Biologia do 2o. ano do Ensino Médio, de Tâmile Stella Anacleto e Felipe Beijamini, pela editora EDEBE.